Brasília – Nos últimos quatro anos, o governo federal deixou de gastar cerca de R$ 3,2 bilhões do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, criado em julho de 2001 para garantir investimentos adicionais em ações de nutrição, habitação, saúde, educação e reforço da renda familiar. Este montante teve grande serventia para a política econômica: ajudou o governo a fazer o superávit primário. Os R$ 3,2 bilhões representam 20% dos R$ 15,2 bilhões efetivamente gastos com recursos do fundo neste período.
O dinheiro seria suficiente para pagar 3,8 milhões de Bolsas Famílias durante um ano, no valor médio de R$ 70 por família. Dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do governo federal (Siafi), registrados em 20 de abril, mostravam uma disponibilidade de R$ 3,171 bilhões em recursos do Fundo de Combate à Pobreza na coordenação-geral de Programação Financeira da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda.
Um levantamento feito pelos gabinetes do deputado federal Eduardo Paes (PSDB-RJ) e do deputado distrital Augusto Carvalho (PPS-DF) mostra que essa disponibilidade em saldo dos recursos do Fundo de Combate à Pobreza tem aumentado ano a ano desde 2001. Enquanto no governo Fernando Henrique a disponibilidade terminou em R$ 2,05 bilhões, no primeiro ano do governo Lula esse valor cresceu cerca de 50% e fechou 2003 com recursos não aplicados de R$ 3,06 bilhões.
"O fundo foi criado como um instrumento para financiar programas na área social. Mas o levantamento mostra que os recursos estão sendo desviados da atividade-fim para o governo fechar as contas de superávit primário. Isso é inaceitável", diz Eduardo Paes. Augusto Carvalho informa que o PPS deve entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal para tentar impedir o desvio de recursos do fundo.
"Vamos entrar com uma ação no STF para obrigar o governo a cumprir o que foi estabelecido na lei que criou o fundo. Não podemos aceitar que, a cada ano, o governo use o dinheiro da área social para ajudar a fechar as contas do Tesouro, já que a disponibilidade dos recursos está aumentando", criticou o deputado distrital.
O levantamento mostra que, em 2004, houve maior eficiência no uso dos recursos do fundo. Mesmo assim, segundo dados do Siafi, apesar de um gasto total de R$ 6,04 bilhões do fundo, o ano fechou com uma sobra de recursos de R$ 2,88 bilhões. Os órgãos que mais receberam dinheiro do fundo foram o Ministério do Desenvolvimento Social (R$ 3,5 bilhões), a Presidência da República (R$ 894 milhões) e o Ministério da Educação (R$ 731 milhões).
O programa Bolsa Família, que unificou os programas de transferência de renda (Bolsa Escola, Cartão Alimentação e Vale Gás), ficou com 60% dos recursos. Já o programa Brasil Escolarizado, que distribui merenda escolar, ficou com 11% dos recursos do fundo.
O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, explica que já em 2004 houve um esforço do governo para regularizar a situação. Mas reconhece que o dinheiro que não foi gasto do Fundo de Combate à Pobreza entrou para a contabilidade do governo. "O dinheiro que deixou de ser gasto acabou ajudando no esforço fiscal do governo", afirma o ministro do Planejamento.
O secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, diz que, nos dois primeiros anos de existência do fundo, os recursos foram acumulados em cerca de R$ 2 bilhões porque, provavelmente, as despesas estavam sendo criadas. Já em 2003, explica Levy, a arrecadação acabou sendo maior do que a previsão inicial que constava no Orçamento. Portanto, afirma o secretário, o planejamento do gasto foi menor do que o dinheiro acumulado no Fundo de Combate à Pobreza.
Segundo o secretário do Tesouro, esse descompasso desapareceu em 2004. Ele diz que houve um planejamento mais eficiente, tanto que chegou a ser feita uma compensação do ano anterior, totalizando gastos de mais de R$ 6 bilhões. Mas Levy admite que o valor que deixou de ser gasto nos anos anteriores não podem mais ser recuperados, pois pode provocar um aumento da dívida.
"Essa sobra dos anos anteriores é indiferente e irrelevante para efeito de administração fiscal. Isso porque se transformou em saldo financeiro. Não temos muito o que fazer. Gastar a sobra é a mesma coisa que aumentar a dívida. Mas posso garantir, que o fluxo do Fundo de Combate à Pobreza já está normalizado e a arrecadação desse ano será igual ao gasto", observou o secretário.
Miami, aluguel, índio, pistola e travestis
Brasília – Além de fazer economia com os recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, o governo passado e o atual usaram dinheiro da conta para finalidades diferentes de suas determinações legais, que são, essencialmente, "viabilizar a todos os brasileiros o acesso a níveis dignos de subsistência". Entre os gastos curiosos estão despesas com diárias para funcionário do Ministério das Minas e Energia que foi a uma palestra em Miami; pagamento de mudança e aluguel de apartamento para servidor público; serviço funerário para esposa de índio; munição para pistola; e até mesmo patrocínio do Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas e Travestis em Manaus.
Estes são alguns do exemplos verificados em levantamento feito no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi). Nos quatro anos de existência do fundo foram gastos, somente em serviços bancários, R$ 270 milhões. Parte dos recursos foi usada para confecção de cartões de pagamento dos benefícios. Somente com passagens aéreas, foram R$ 18,1 milhões. Outros R$ 11,4 milhões foram gastos com diárias.
O Ministério das Minas e Energia, responsável pelo Vale Gás, um dos programas bancados pelo fundo, usou R$ 2.555 em diárias internacionais em Miami e R$ 2.250 para outro funcionário que foi à Venezuela. A pasta também usou dinheiro para ressarcimento de aluguel de seus funcionários.
Já uma funcionária da Defensoria Pública da União recebeu R$ 7.725 para pagar uma transportadora que fez sua mudança. A Funai aproveitou R$ 1.823 para comprar material de caça e pesca para índios em Parintins (AM), inclusive munição para arma calibre 38.
A Funai ainda usou recursos das ações de combate à fome para pagamento de serviço funerário da esposa de um índio, servidor do órgão em Porto Velho (R$ 1.229); para recuperação de carpetes e tapetes de um Toyota da Funai de Rondônia (R$ 1.500) e para a manutenção de armas da Funai em Altamira (R$ 1.054). Já a Secretaria de Direitos Humanos usou R$ 49.950,00 para patrocinar a realização do XI Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis, em Manaus.
O Ministério da Educação, por sua vez, fez serviços de engenharia num prédio em Brasília (R$ 812.653,35); contratou uma fundação da UnB para desenvolver metodologia de planejamento e monitoramento de ações de governo (R$ 510 mil); e ampliou a central telefônica do MEC (R$ 191.080). Enquanto isso, a Embrapa usou os recursos para comprar canivetes (R$ 130), camisas, bonés e canetas (R$ 4.990), câmara digital ( R$ 1.500) e até para pagar impressão de folhetos (R$ 2.300).