Menos de um ano e meio após o desembarque no Brasil, cerca de um terço dos 108 refugiados palestinos vindos do Iraque tem hoje um único objetivo: ir embora do País. Alguns querem sair por perceber que a realidade brasileira não chega nem perto da “terra prometida” que esperavam, com oportunidades de emprego, sistema de saúde e assistência social para todos. “Eles pensavam que aqui fosse primeiro mundo”, afirma a representante do Comitê de Assistência aos Refugiados Palestinos em Santa Maria (RS), Najah Samara Alkatib. Outros, por não conseguirem se adaptar à cultura brasileira e se considerarem “abandonados” pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), agência responsável pelo programa de inserção dos palestinos no Brasil.
Os palestinos insatisfeitos com o Brasil não reclamam do povo nem do governo brasileiro. Muitos deles dizem gostar do País e das pessoas daqui. No entanto, dificuldades com o aprendizado do português e para encontrar trabalho os motiva a buscar outros lugares que possam oferecer melhores condições. “O programa (para refugiados palestinos) tem muitas coisas erradas”, diz Huda Albandar, que mora com o marido e dois filhos em Mogi das Cruzes, município da Grande São Paulo onde vive uma parte dos imigrantes vindos para o País em setembro de 2007.
A vinda dos palestinos fez parte de um acordo do governo brasileiro com o Acnur. Eles viviam desde 2003 no campo de refugiados de Ruweished, no deserto da Jordânia, a 70 quilômetros da fronteira iraquiana. Antes de chegar ao campo jordaniano, o grupo deixou o Iraque, na época da queda do regime do ditador Saddam Hussein. Pelo acordo, parte deles foi morar em Mogi das Cruzes (SP) e parte em Santa Maria, Venâncio Aires (RS) e Dois Vizinhos (PR).
Huda reclama principalmente da falta de assistência aos refugiados na hora em que precisam de atendimento médico ou procurar emprego. Tanto ela, de 29 anos, quanto o marido, Walid Altamimi, de 40, estão desempregados. “(A situação) é muito preocupante. Procurei trabalho em muitos lugares e não achei. Para meu marido é mais difícil, porque ele não fala a língua”, afirmou. Huda contou que ambos frequentam aulas de português, mas ela acabou se saindo melhor porque tem amigos brasileiros, que falam com ela todos os dias. Já os filhos, de 6 e 9 anos, aprenderam “muito bem” o português na escola municipal onde estão matriculados.
De acordo com ela, o que foi prometido enquanto estavam no campo de Ruweished não se parece em nada com o que foi encontrado no Brasil. “Eles (o Acnur) disseram: ‘Você vai ganhar casa, documentos e trabalho’ e quando chegamos aqui foi diferente.” Hoje, a família se sustenta com a ajuda do Acnur. O aluguel é pago pela agência da ONU, por meio da Cáritas Brasileira, organização de atuação social da Igreja Católica, e eles recebem ainda um auxílio de R$ 800, valor definido de acordo com o tamanho da família.
Porém, de acordo com o programa para refugiados do Acnur, os benefícios financeiros têm duração de dois anos e, no caso dos palestinos no Brasil, o prazo termina daqui a cerca de oito meses. O fim da assistência tira o sono dos refugiados que não encontram emprego. “Nem quero pensar nisso, porque tenho medo de não conseguir dar um futuro melhor para meus filhos. Estou muito preocupada”, afirmou Huda.
Protesto
Sheiqh-Hosni, chefe da mesquita de Mogi das Cruzes e espécie de líder dos palestinos na cidade, endossa o relato de Huda. “O Acnur não conseguiu nenhum emprego”, disse. Ele também contou que aqueles que conseguiram trabalho por conta própria ganham muito pouco e temem não poder sustentar a família com o fim da ajuda financeira. De acordo com Sheiqh, antes de saírem do Oriente Médio, muitos relataram os problemas de saúde esperando tratamento especializado. “Prometeram consultas e cirurgias para os que precisam, mas isso não foi cumprido.”
Outro refugiado que se diz em dificuldade é Kamal Mustafa, de 39 anos. Alegando falta de auxílio para encontrar emprego e obter atendimento médico na rede pública, Kamal participa de um protesto em Brasília – acampado com mais três palestinos na frente da sede do Acnur – que já dura sete meses. Ele e o irmão moraram em Mogi das Cruzes, mas agora querem viver em outro país. “O Brasil não tem programa para refugiado”, afirmou ele, que sabe pouco o português. “Chegamos aqui e não tem nada. Estamos abandonados.”
Mustafa e cerca de 30 refugiados preparam uma ação em que pedem na Justiça a intermediação do Acnur no encaminhamento a um programa de reassentamento em outro país, de preferência na Europa. “Eles precisam de um programa claro, que não existe no Brasil. Há um programa da ONU, mas não há regulamentação sobre a questão da assistência aos refugiados”, diz a advogada dos palestinos, Sandra Nascimento. “A execução desse programa acaba dependendo das entidades envolvidas, não de uma regulamentação nacional. Assim, funciona para uns e não para outros.”
Segundo ela, em relação ao atendimento médico, as instituições parceiras falharam no encaminhamento dos refugiados à rede pública. “Levaram uma vez e pronto”, afirmou. “Há pessoas idosas no grupo e a maioria não fala o português, daí a dificuldade”, explicou.
Acnur
O Acnur nega que tenha “abandonado” os refugiados palestinos e afirma que eles recebem toda a ajuda necessária para a integração no Brasil. Segundo o órgão, existe sim um programa de refugiados no País, que funciona em parceria com organizações da sociedade civil. Por meio do Programa de Reassentamento Solidário, o governo brasileiro oferece refúgio e documentação, como registro de identidade e carteira de trabalho. Com isso, segundo a assessoria de comunicação do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, os refugiados têm acesso a qualquer serviço básico oferecido no País, “assim como qualquer brasileiro”.
O Acnur é responsável por encontrar parceiros que deem assistência aos estrangeiros, como aulas de português e auxílio no encaminhamento à rede de saúde e educação. Essa ajuda inclui, segundo o organismo da ONU, “assistência financeira por período limitado, casas alugadas e mobiliadas, aulas de português e assistência social, além de apoio para inserção no mercado de trabalho. A sociedade civil oferece ainda cursos profissionalizantes, acesso a programas de microcrédito e orientação psicossocial.” O Acnur argumenta ainda que problemas de atendimento na rede pública de saúde ou educação são decorrentes da própria situação do País, e não do órgão da ONU ou de seus parceiros.
Segundo o representante do Acnur no Brasil, Javier López-Cifuentes, todos recebem assistência, mas a integração é um processo “difícil e lento” e alguns dos refugiados podem não se adaptar. Para ele, o principal empecilho ainda é o não-aprendizado da língua. É essa, diz, a causa de parte dos refugiados não encontrarem emprego. Ele afirma que os refugiados têm direito a aulas de português todas as semanas. “Uns assistem aulas e outros não. Mesmo assim, o aprendizado da língua leva um tempo.”
Doutorado
López-Cifuentes conta que grande parte dos refugiados palestinos tem uma ocupação, mesmo que esse trabalho não seja estável. De acordo com ele, há palestinos com emprego em restaurantes, em fábricas e em frigoríficos, além de dois que atualmente fazem doutorado na Universidade de São Paulo (USP). O representante conta que há um grupo de 20 refugiados palestinos que trabalha com abate de frangos para exportação em Dois Vizinhos. “O problema é que eles trabalham um tempo, uns três ou quatro meses, e saem achando que vão encontrar outro emprego muito melhor.”
No entanto, mesmo com as dificuldades, López-Cifuentes acredita que, no final do programa, os refugiados estarão adaptados. “O Brasil fica muito longe culturalmente e religiosamente de onde eles vieram. A integração não é um processo fácil. Sempre tem um grupo que não consegue se integrar, é normal. Mas ao fim do programa, eles estarão integrados.”
Já o Conare, em nota enviada por e-mail, afirmou que as reclamações dos palestinos não passam de “ingratidão”, já que o Brasil, alega o Comitê, “foi o único País que se dispôs a acolher os cidadãos palestinos que se encontravam no campo de Ruweished”. No e-mail, o Conare informa que “reafirma, em nome do governo brasileiro, total compromisso de outorgar proteção jurídica aos refugiados, decisão que se mostra acertada, principalmente em momento de conflito internacional envolvendo palestinos e israelenses”.