O torneio de futebol na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, no interior de São Paulo, em 1993, apresentou o Primeiro Comando da Capital ao mundo, ao menos ao mundo penitenciário paulista. A competição convocada pelos fundadores da facção serviria como o meio perfeito para eles se livrarem de rivais locais e para que iniciassem a expansão para outras penitenciárias do Estado. Usando os mesmos meios de dominação e violência característicos dos rivais, o PCC se escondia sob o lema da defesa dos direitos dos detentos para alavancar o seu desenvolvimento, testado com sucesso em rebeliões coordenadas como as que aconteceram em 1999, 2002 e 2006.
No meio desse caminho, intrigas, “golpes” e organização marcaram o modelo de negócios criminosos da facção, que tem hoje como expoente Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. De Taubaté, a organização há muito deixou seu aspecto interiorano para, em 2017, ter forte atuação em países como Paraguai e Bolívia, consolidando a sua principal fonte de renda no que já é chamado de cartel sulamericano: o tráfico de cocaína.
O livro Laços de Sangue – A história secreta do PCC vai da origem ao funcionamento atual da organização para detalhar como ela funcionou e como conseguiu se impor ao Estado, sofrendo derrotas ocasionais, mas se reerguendo com demonstrações de força.
De autoria do procurador de Justiça do Ministério Público paulista Márcio Sérgio Christino e do jornalista Claudio Tognolli, a publicação será lançada nesta quinta-feira, 9, com a mensagem de que as instituições e governos precisam reagir para enfrentar a força crescente do PCC, uma ameaça que permanece viva e cada vez mais forte quase 25 anos depois da sua primeira demonstração de poder. A seguir, leia a entrevista que Christino concedeu à reportagem nesta semana.
O PCC se tornou uma marca conhecida em todo o País pelas sucessivas demonstrações de coordenação de detentos em São Paulo e por ter exportado seu modelo de negócios criminosos para o País. Que história secreta é essa que é vendida no título do livro?
Todo mundo fala que o PCC é uma organização conhecida, mas esse nível de informação é muito superficial. Ninguém tem uma noção exata e precisa de como começou e se desenvolveu e como resultou naquilo que é hoje. Nem eles mesmo sabiam onde isso acabaria dando. O início deles é sempre referido às mortes durante o torneio de futebol em 1993, mas isso não é completamente verdadeiro. Há indícios de que dois anos antes eles já estavam se organizando. Aquele momento, em 1993, foi quando eles se apresentaram como uma entidade organizada com nome e função. Isso não surgiu do nada. De lá para cá, houve crescimento e uma série de conflitos internos e externos que resultaram na morte de todos os fundadores originais, exceto de um: José Márcio Felício, o Geleião, que está numa penitenciária federal.
Durante a sua história, o PCC usa o slogan de “Paz, Justiça e Liberdade” para tentar legitimar a sua atuação como representante da massa carcerária, como uma entidade anti-opressão. O que o livro mostra, no entanto, é que a violência e a opressão contra companheiros de detenção estão na raiz da tomada e consolidação do poder da facção, não é isso?
Quais crimes que eles mais praticaram até hoje? Homicídios. De quem? De presos. A organização que diz lutar pelos interesses dos presos, querendo Paz, Justiça e Liberdade, não pode começar atuando justamente na eliminação dos outros presos. Em vez de “Paz, Justiça e Liberdade”, o correto seria “Guerra, Morte e Dominação”. Se você não seguir as regras, você será punido. A punição é a morte.
Dentre os fundadores, só há um vivo, e o núcleo que hoje controla a facção é outro, encabeçado por Marcola. Como houve essa mudança?
De 1993 a 1999, eles passam um período de confrontação com o Estado, com resgates, pressão no sistema penitenciário. Em 1999 e 2000, acontecem rebeliões em Taubaté e dois dos fundadores são executados. A morte desses dois fundadores significa o fim do poder daquela linhagem inicial e a ascensão de uma nova liderança. Daí surgem outros líderes como o Gegê do Mangue, o Gulu, o Marcola, que não estavam na formação original. Agora eles ascendem ao poder.
O que ajuda a entender a expansão do PCC no País?
O PCC se aproveitou de um vácuo que existia na América do Sul, especialmente no Brasil e ocupou esse espaço. Como não havia antagonistas, cresceu com facilidade.
É icônico a série de ataques em 2006. Por que eles não têm optado novamente por essa estratégia?
Eles não buscam a atenção e se puderem negar que fazem parte da facção, eles negarão. Essa é a estratégia. Por esse motivo, não vemos mais ataques. E isso deve seguir até o momento que eles sofram uma afronta direta, sendo atingidos em algum interesse primordial.
Em mais de uma oportunidade, o senhor fala no livro que o Estado agiu de forma covarde ao atender pedidos da facção para fazer cessar rebeliões, por exemplo. Qual o papel do Estado, da polícia ao Judiciário, na expansão da facção?
Se o Estado fosse perfeito, não existiria facção, mas também não teria problema na Saúde e Educação. O Estado não é perfeito. Houve momentos de combate efetivo, mas houve erros também. Penso que dada a expansão deles, o Estado deveria se projetar para o futuro. Hoje é fácil falar, olhando para trás. Hoje, ainda temos dificuldades no que cabe ao Poder Executivo e também ao Legislativo, que não permite, por exemplo, o isolamento. Como vamos parar uma liderança se não podemos isolá-la? Essa é uma questão que o Estado tem que se debruçar para chegar a uma conclusão e a alguma medida mais eficaz.
O ano de 2017 começou com centenas de mortes relacionadas a briga entre facções, do PCC com o Comando Vermelho e núcleos regionais. Conseguimos entender melhor essa situação agora?
Vejo tudo como um reflexo da morte do Rafaat (Jorge Rafaat, morto na fronteira do Brasil com o Paraguai em junho de 2016). Isso gerou o estabelecimento da força do PCC na rota da Bolívia ao Brasil, passando pelo Paraguai, e a quase um monopólio nos negócios do tráfico de cocaína. Quase um monopólio porque a rota alternativa é a do Rio Solimões, dominada agora pela Família do Norte, que se impôs ante o PCC no Amazonas. Com fornecedor próprio, a facção tem força e recursos próprios.
A situação indica que o PCC terá ainda mais força no futuro?
Precisamos de uma reação do Estado, e deve envolver não só São paulo, mas outros Estados, pensando ainda em um sistema de cooperação internacional com Paraguai e Bolívia para que possamos atuar na causa, na origem. Em outra medida, precisamos pensar a forma como queremos combater o tráfico hoje, entendo o crime na sua integralidade. O que há hoje são empresas do crime, com gerentes e soldados, não há mais o tráfico romântico. O PCC já se tornou um cartel internacional. A situação brasileira não é confortável. No Rio, o que vemos acontecer hoje tem paralelo com o que aconteceu no México. O Brasil está chegando a um estado crítico em alguns pontos e há necessidade de um empenho nacional e internacional para abordar essa questão.