Este é o primeiro carnaval da era bolsonarista, tá ok? A questão do viés ideológico, tantas vezes citada pelo presidente, estará presente (e onipresente) na folia dos blocos, escolas de samba, fantasias e marchinhas. “É bom Jair arrumar uma desculpa/ Por que o major já conversou com coronel/ E o general já decretou/ Se tiver outro escarcéu/ O capitão vai ser expulso do quartel”, cantam os Marcheiros, em uma das mais de dez composições do grupo inspiradas no atual governo.
Desde o império, o carnaval se alimenta da crônica política e seus personagens. Mais recentemente, os ex-presidentes petistas Lula e Dilma Rousseff foram os alvos preferenciais. No auge da Operação Lava Jato, o Japonês da Federal e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes se transformaram nos mais retratáveis da festa. Não seria diferente com o próprio Bolsonaro e sua trupe, como os filhos, a ministra Damares Alves (pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos), o motorista Fabrício Queiroz e tantos outros.
Nas lojas de fantasia do centro de São Paulo, máscaras de Bolsonaro, de Sérgio Moro, ministro da Justiça, e a da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, estão entre as mais procuradas. Fantasias ou adereços que remetem ao universo militar também estão em alta – mas nada, nada mesmo, tem superado o frenesi por peças azuis e rosas.
O “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, frase de Damares ao assumir o ministério, transformou-se em uma espécie de mote invertido do carnaval. “Como somos muito formais, vamos respeitar as designações de cor mais adequadas ao “dresscode atual”: rosa para meninos e azul para meninas. Todo o resto de vermelho, obviamente”, disse Yumi Sakete, diretora do bloco Ritaleena.
Além de reverenciada (ironicamente, claro) em vários blocos, a ministra Damares é, praticamente, a inspiradora da música recém-lançada por Daniela Mercury e Caetano Veloso, a Proibido Carnaval. Na letra, os autores perguntam se o folião “vai de rosa ou de azul”, pedem “para abrir a porta desse armário” e sentenciam que “está proibido o carnaval nesse País tropical”. A música é dedicada ao ex-deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ), que deixou o País após ameaças de morte.
No pré-carnaval, a escola de samba paulistana Rosas de Ouro ainda promoveu uma festa em que as meninas vestiam azul e os meninos rosa (que também são as cores da agremiação).
Abadá laranja
No Rio e em Belo Horizonte, o Bloco Eu Avisei sai com abadá laranja, críticas ao governo e aos eleitores arrependidos de Bolsonaro. “Vamos sair com a bandeira branca levantada. O bloco não promove nenhum tipo de apologia à violência. Estamos ali para nos divertir e exercer nosso direito como cidadão de realizar um manifesto político”, afirmou o criador do grupo, que preferiu não se identificar.
Em São Paulo, o Acadêmicos do Baixo Augusta vai reforçar o caráter político. O tema será Que País é Esse. Não à toa, Dado Villa Lobos e Marcelo Bonfá, da Legião Urbana, estarão no trio defendendo a música da banda que inspirou o bloco. “A irreverência do carnaval não deixa passar nenhum governo. Está no DNA da folia. Ainda mais agora, em um governo que pretende ter tanta ingerência no espaço do indivíduo”, diz Leo Madeira, fundador do Baixo Augusta. Outro bloco, a Espetacular Charanga do França tem usado as frases “não deixe o fascismo ditar as regras” e “não deixe o fascismo controlar seu corpo” em seu material nas redes sociais.
Mas nem só de bloco contra o governo é feito o carnaval. Em Pernambuco, o grupo Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos vai sair com o Eu vim de graça (provocação a manifestantes petistas). Além disso, Bolsonaro, a primeira-dama e Moro estão entre os homenageados dos tradicionais bonecões de Olinda. “O que ainda não sei é se vamos sair com eles (esses bonecões) pelas ruas de Olinda. Tem muita gente de esquerda no carnaval da cidade. Quero evitar qualquer tipo de correria e confusão. O bonecão do Bolsonaro, provavelmente, só sairá em Recife”, diz Leandro Castro, responsável pelos bonecos.
Cautela
Já o Bloco Soviético, sucesso na folia de rua paulistana, chegou ao fim. O grupo, que fazia graça com a política e se intitulava comunista, considerou arriscado sair este ano. Em janeiro, disseram nas redes sociais que um desfile, “mesmo que clandestinamente, atrairia atenções sem espírito carnavalesco, colocando em risco físico integrantes e foliões, o que seria uma temeridade e, no limite, irresponsabilidade”.
A escola Águia de Ouro também experimentou um pouco do risco da politização. Em ensaio técnico na semana passada, um membro da escola desfilou vestido do ditador Adolf Hitler e fez gestos que remetiam a Bolsonaro (como o da arminha com a mão). Tão logo a imagem se espalhou na internet, a agremiação se apressou em dizer que não há nada em seu enredo nesse tom. A assessoria de imprensa da escola responsabilizou o integrante, que foi banido do desfile. Ele não foi encontrado pelo Estado para comentar.
Rio de Janeiro
Protagonista do primeiro escândalo ligado ao presidente Jair Bolsonaro após sua eleição, o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz inspirou um grupo de foliões cariocas a criar o Essa é do Qróiz. Mas, assim como Queiroz não compareceu ao Ministério Público do Estado do Rio para prestar depoimento em nenhuma das quatro vezes em que foi convidado até agora, os foliões também planejam não comparecer ao desfile do bloco. “Só vamos aparecer para desfilar se o Queiroz aparecer para depor”, conta o produtor cultural Ricardo de Moraes, de 60 anos, um dos criadores.
O Essa é do Qróiz, brincadeira também com o nome do escritor português Eça de Queiroz (1845-1900), já ganhou até uma logomarca: uma laranja com braços cujas mãos simulam segurar uma arma – gesto símbolo de Bolsonaro durante a campanha eleitoral. A laranja foi escolhida porque, no jargão policial, designa a pessoa que “empresta” seu nome para ocultar a origem ou o destino de dinheiro ilícito.
Segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do governo federal, Queiroz movimentou R$ 1,2 milhão entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, quando atuava como assessor parlamentar e motorista de Flávio Bolsonaro (PSL), então deputado estadual no Rio e hoje senador, além de filho do presidente. O assessor fez depósito de R$ 24 mil na conta da primeira-dama Michelle. As transferências criaram a suspeita de que Queiroz atuasse como “laranja” da família, o que sempre foi negado pelos Bolsonaro.
“Por enquanto não temos planos de desfilar, até porque parece que o Queiroz também não vai depor”, diz Moraes. “Vamos divulgar só nossas posições: nesta semana, queríamos que a enchente (que deixou sete mortos) não tivesse aparecido nem o incêndio no Ninho do Urubu (centro de treinamento de Flamengo, onde dez atletas morreram). E queríamos que o governo tivesse aparecido.”
O tom político também vai chegar ao carnaval da Sapucaí, como é comum. No ano passado, a escola de samba Paraíso do Tuiuti retratou um vampiro com faixa de presidente da República, menção velada a Michel Temer.
Neste ano, a Acadêmicos do Sossego vai levar ao sambódromo um boneco do diabo com as feições do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB). A escola, que é de Niterói, região metropolitana do Rio, e desfila na segunda divisão do concurso carioca, apresentará o enredo Não se meta com minha fé, acredito em quem quiser, em que defende a liberdade religiosa. Sobrinho de Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Crivella é pastor licenciado da igreja do tio.
Criticado pelos sambistas por reduzir a verba destinada pela prefeitura às escolas de samba e por tentar impor regras que dificultam o desfile dos blocos, Crivella já havia sido criticado na Sapucaí pela Mangueira, que em 2018 apresentou o enredo Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco.
Neste ano, mais uma vez a Verde e Rosa fará críticas políticas em um enredo sobre a história do Brasil que não está registrada nos livros didáticos. O samba se tornou muito popular, com um verso em que cita a vereadora Marielle Franco, assassinada em março do ano passado.
“O carnaval é vivo e contestador e tem intimidade com as coisas do povo. Quando as questões políticas ganham protagonismo, o carnaval reflete isso, com seu caráter irreverente, satírico. O Brasil vive uma escalada conservadora, e isso é sempre visto com estranheza pelo carnaval”, avalia o carnavalesco Leandro Vieira, responsável pelo enredo História para ninar gente grande. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.