Um relatório produzido por consultores legislativos divulgado na segunda-feira (1) classificou a Gazeta do Povo, jornal fundado em 1919, como divulgador de “notícias falsas”. O documento foi produzido a pedido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, que está em curso atualmente no Congresso Nacional.
A classificação negativa ao veículo centenário, e detentor de diversos prêmios jornalísticos, foi dada, segundo a relatoria da comissão, após consulta de seis agências verificadoras. Consultadas pela reportagem da Gazeta do Povo, no entanto, todas as agências negaram a classificação e, ainda, afirmaram nem terem sido acionadas pelo Legislativo para fazer a validação.
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A lista que cita a Gazeta inclui outros 47 sites como supostos propagadores de notícias falsas. A CPMI produziu um levantamento sobre sites, canais no Youtube e aplicativos para celular que veicularam propagandas do governo federal, foram remuneradas por meio da plataforma Google Adwords e que, na avaliação da comissão, seriam “inapropriados” para isso — por divulgarem fake news, por violarem direitos autorais ou por terem um público-alvo não condizente com as campanhas do governo.
O período avaliado pela CPMI foi o do intervalo entre os dias 6 de junho a 13 de julho de 2019. O texto foi produzido pelos consultores legislativos Cristiano Aguiar Lopes e Daniel Petersen. A Gazeta do Povo notificou a CPMI para a exclusão formal do nome do jornal do relatório.
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A relatora da CPMI das Fake News, deputada Lídice da Mata (PSB-BA), afirmou em nota que foram dois os critérios utilizados pela consultoria legislativa para a inclusão dos veículos no relatório. Um é o fato de a página ter publicado, no prazo analisado pela comissão, “três ou mais matérias classificadas como ‘desinformativas’ pelos principais checadores de notícias do país”.
Os checadores definidos pela CPMI são Agência Lupa, Estadão Verifica, Comprova, Aos Fatos, E-farsas e Boatos.org. O texto ainda afirma que “Este critério é sabidamente utilizado por toda imprensa para classificar a divulgação de informações erradas”.
Na nota, Lídice aponta que a consultoria da Câmara “deve realizar uma resposta contendo a explicação técnica e uma classificação que corresponda ao comportamento de cada um destes nas redes”, em relação aos veículos que questionarem a inclusão de seus nomes na lista. O outro critério mencionado pela deputada é o de canais que “contrariam consensos científicos, difundem ‘teorias da conspiração’ ou apresentam conteúdos potencialmente danosos à saúde pública”.
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Agências de checagem negam ter sido consultadas
A reportagem da Gazeta do Povo procurou as seis agências indicadas. Todas desmentiram a versão da relatora. Comprova, Aos Fatos, Estadão Verifica, Boatos.org, Lupa e E-Farsas relataram não terem sido consultados pela comissão para o fornecimento de informações sobre a Gazeta e nem sobre outros veículos mencionados na relação.
“O Aos Fatos nunca foi consultado sobre essa lista e desconhecemos a metodologia empregada nesse tipo de categorização”, afirmou a jornalista Tai Nalon, diretora executiva da Aos Fatos. Em nota, o site Boatos.org disse que os registros da página não contêm nenhum desmentido sobre a verificação sobre conteúdos da Gazeta do Povo.
O analista Gilmar Lopes, responsável pelo E-Farsas, destacou que nas vezes em que a Gazeta do Povo foi mencionada em seu site, foi na condição de fonte, como base para a prestação de esclarecimentos e correção de outros conteúdos. “A Gazeta é uma referência para nós”, disse.
O Estadão Verifica confirmou que não classificou a Gazeta do Povo como um veículo de fake news e que tampouco foi procurado pela CPMI para ceder informações sobre o assunto.
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A resposta das agências demonstra que, ao contrário do que diz o relatório, a Gazeta do Povo é uma fonte de credibilidade no meio jornalístico.
Uma adversária na luta contra a desinformação
O presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech, disse considerar “lamentável e absolutamente surpreendente” a inclusão da Gazeta do Povo em uma lista de veículos que divulgariam notícias falsas.
“Como um membro tradicional e de destaque na Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Gazeta tem sido, ao contrário, uma adversária permanente da desinformação e um veículo de ponta na defesa da pluralidade e do jornalismo profissional”, disse Rech. O presidente da ANJ afirmou ainda esperar que a CPMI apresente esclarecimentos sobre os critérios que levaram à inclusão da Gazeta na lista: “A ANJ requer da CPMI o esclarecimento sobre as motivações que levaram à inclusão da Gazeta do Povo nesta infame relação e espera o quanto antes um reparo justo e urgente ao seu jornal associado”.
O Presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel, afirma que o episódio “demonstra os riscos de se gravar em lei um conceito de desinformação e deixar a cargo do Estado a classificação de uma notícia como falsa ou verdadeira”. “Por sorte, se trata apenas da opinião de consultores legislativos, não de uma sentença judicial. Esperamos que o caso sirva de alerta para os congressistas que pretendem aprovar a toque de caixa, em meio a uma crise sanitária e econômica, leis sobre o tema, sem discussão ampla e tranquila com os jornalistas e com a sociedade”, acrescentou.
Apuração criteriosa está no DNA da Gazeta do Povo
“O relatório da CPMI das Fake News erra ao classificar a Gazeta do Povo como um site divulgador de notícias falsas. Não apenas erra como expõe a falta de conhecimento dos integrantes da CMPI sobre um dos maiores jornais do país segundo todas as ferramentas de medição de audiência. A Gazeta do Povo checa notícias há mais de cem anos, muito antes da criação da ideia de agências especializadas. Logo, a apuração criteriosa dos acontecimentos está solidificada em nosso DNA”, afirma Ewandro Schenkel, chefe de redação da Gazeta do Povo.
A credibilidade do jornal centenário já foi reconhecida em diversas áreas, explica Schenkel. “Ganhamos praticamente todos os maiores prêmios de jornalismo nacional e muitos internacionais, como o Grande Prêmio Esso, o Tim Lopes de Jornalismo Investigativo e o Global Shining Light Award entre outros. Não custa lembrar que a Gazeta foi o veículo de qualidade (“quality paper”) mais lido durante as eleições de 2018, conforme dados auditados pela Comscore. Passam pelas nossas páginas mais de 14 milhões de leitores todos os meses. O índice de aprovação entre nossos assinantes, segundo pesquisas internas, é altíssimo”.
“Em nossa história, sempre prezamos pelo jornalismo profissional, independente e com grande potencial de transformação da sociedade. Consideramos ainda que não se pode separar a “checagem dos fatos” da própria noção de um jornalismo sério. A apuração é matéria prima básica que norteia todo o trabalho desenvolvido pela redação da Gazeta do Povo. Classificar o nosso jornalismo como falso diz mais sobre os responsáveis pelo relatório do que sobre o conteúdo que publicamos”, conclui.
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná, ao qual a maior parte da redação da Gazeta do Povo está associada, não se manifestou.
A base da crítica que motivou o relatório da CPMI está no uso, por parte do governo federal, da plataforma Google Adwords. O sistema de anúncios da empresa distribui de forma automática as propagandas em páginas selecionadas por meio de algoritmos. Ou seja, o contratante da propaganda não escolhe diretamente onde quer que seu anúncio seja divulgado. Há, entretanto, o poder de vetar a aparição em algumas páginas.
Em nota enviada à imprensa na quarta (3), a Secretaria de Comunicação (Secom) do Palácio do Planalto disse que a responsabilização pelos sites contemplados com os anúncios deve ser direcionada ao Google, uma vez que o governo faz apenas a contratação dos serviços do Adwords. “Ou seja, cabe à plataforma as explicações pertinentes sobre a ocorrência. Os veículos que constam na lista citada pela matéria foram selecionados pelo desempenho auferido pelo algoritmo do Google, e não pela Secom”, disse a nota. A matéria citada pelo trecho é uma reportagem do jornal O Globo que abordou a realização dos anúncios em canais “impróprios”.
A verba correspondente aos anúncios do governo federal via Google Adwords para a Gazeta do Povo foi de R$ 909,16 em 2019 e é de R$ 494,49, do início de 2020 até os dias atuais. O valor tem peso diminuto em relação ao auferido pela Gazeta com assinaturas e outros tipos de publicidade.
CPMI é campo de batalha entre governo e oposição
A CPMI das Fake News foi instalada em setembro do ano passado e, desde então, tem sido um palco constante de embates entre apoiadores e adversários do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ou mesmo entre atuais defensores do presidente e antigos aliados. Neste último grupo encaixam-se os deputados federais Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP), que concederam depoimentos de elevada temperatura à comissão: ambos falaram sobre a suposta estrutura do “gabinete do ódio”, que seria um esquema chefiado pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) para disseminar notícias falsas e destruir reputações na internet.
Outro momento de conflito na comissão se deu em fevereiro, com o depoimento de Hans River do Rio Nascimento. Ele foi funcionário da Yacows, uma empresa que realizou disparos de mensagens em massa para candidatos de diversos partidos durante as eleições de 2018. Nascimento, em sua fala, acusou uma repórter da Folha de S. Paulo de oferecer favores sexuais a ele em troca de informações exclusivas. Acusação que foi derrubada após a revelação da troca de mensagens entre os dois.
A base aliada de Bolsonaro é contrária à CPMI desde sua instalação. Eles veem no colegiado uma tentativa de deslegitimação da vitória eleitoral de 2018. Segundo eles, os adversários não aceitam o fato de que a mensagem do presidente se tornou a mais forte nas redes sociais. Já os opositores de Bolsonaro alegam que a força bolsonarista na internet pouco tem de orgânica, e por isso são necessárias investigações.
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