A vitória de Lula não foi apenas a vitória de uma política alternativa. Foi também a vitória da ética na política, dos interesses públicos sobre os particulares, do poder como mediação para a justiça social e não como instrumento de realização do projeto das elites, em fim, da esperança de um outro Brasil possível, sem compadrios e maracutaias.
Contrariando esse sonho bem-aventurado, ocorreu uma recaída que encheu a mim e a muitos de indignação: a rejeição por parte da Mesa Diretora do Senado, em manobra comandada pelo presidente da Casa, o senador José Sarney, do resultado do Conselho de Ética que apontara indícios sérios de envolvimento do senador Antônio Carlos Magalhães na escuta de 232 grampos ilegais na Bahia. E se como isso não bastasse, o Plenário do Senado, acobertado por uma estranha votação secreta, confirmou por 49 contra 25 votos a decisão da Mesa rejeitando a abertura de processo por falta de decoro do senador baiano. De repente fomos transportados ao Brasil velhista no qual a “ação entre amigos (da onça)”, no dizer da indignada Dora Kramer, se sobrepôs à consciência e ao sentido da ética.
Estamos injuriados porque eles mostraram que não têm vergonha, no sentido que vergonha possui na tradição ética. Já Aristóteles nos ensinara que ter vergonha é um dos indicadores mais inequívocos de que ainda não perdemos de todo o senso ético, o enrubescimento face aos atos maus que praticamos. No episódio, nos enrubescemos nós e os valorosos senadores e senadoras que votaram contra a decisão da Mesa. Mas não o senador José Sarney que comandou a despudorada operação de salvamento de seu amigo reincidente. Foi falta de vergonha, vale dizer, de ética, o que lá se perpetrou em menos de 24 horas depois de o Conselho de Ética ter apresentado suas conclusões, portanto, sem o tempo hábil de avaliá-las adequadamente.
O poder público, como o Senado, não é apenas instância delegada do poder popular, base da democracia, nem é tão somente técnica de gerenciamento das questões do bem comum. Ele é principalmente instância ética. Representa valores da cidadania, do bem comum, da transparência no cuidado da coisa pública. Nós cidadãos temos o direito de esperar que nossos representantes no Senado vivam esses valores e não os neguem por suas práticas “sem vergonha”. E ai há senadores e senadoras do mais alto gabarito ético que conferem dignidade à função que desempenham e que não nos deixam desesperar.
Mas é desolador constatar que a idade não ajudou ao presidente da Casa a crescer em sabedoria e em tato ético. Enrijeceu-se numa prática política feita de conchavos e compadrios. O outro senador, socorrido por ele, também carregado de dias e vergado já sob o peso de seus vícios políticos e pecados públicos, mostrou que nada aprendeu da lição recebida há um ano, ao ter que renunciar a seu posto no Senado, por ter violado o painel eletrônico.
Quanto teremos de evoluir ainda em consciência política e ética para podermos cortar o caminho desses que condenam o Brasil ao atraso e à indecência pública? Que não se feche o Conselho de Ética. Por ele não se poderia processar o senador José Sarney por ter faltado ao decoro in conspectu omnium, na cara de todo o povo brasileiro.
Leonardo Boff
é teólogo. Informativo Rede de Cristãos.