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‘Ele levou tiro até no joelho’, diz mãe de rapaz morto após abordagem de PMs

Para ver o filho, a diarista Ana Glória de Jesus e Silva precisa conseguir dormir, mas a insônia tem vencido a maior parte das noites. Em um sonho que se repete, o jovem de 17 anos corre por uma ribanceira, enquanto a mãe tenta agarrá-lo várias e várias vezes: até o momento em que o rapaz some na escuridão. Os sonhos são recentes, começaram desde que Guilherme da Silva Jerônimo morreu com ao menos três tiros e fraturas no corpo, no fim de dezembro, após uma abordagem policial na Penha, zona leste de São Paulo.

Para familiares, Guilherme foi vítima de uma emboscada de PMs – a mãe dele chegou a fazer denúncia na Ouvidoria das Polícias de São Paulo. “A maldade que fizeram com ele não se faz nem com um cachorro”, afirma à reportagem Ana Glória. “Isso, para mim, é um monstro. Esse policial tem de sair da rua para não fazer com outra pessoa.”

As circunstâncias da morte de Guilherme, registrada no dia 21 de dezembro, são investigadas pelo 10.º Distrito Policial (Penha), sob acompanhamento da Corregedoria da Polícia Militar, segundo informações da Secretaria da Segurança Pública (SSP). A pasta também afirma que “não há até o momento prova de envolvimento de PMs na ocorrência”.

Crime

À Polícia Civil, uma testemunha relatou que havia passado o dia com Guilherme e os dois resolveram comer um lanche, por volta das 19 horas. No caminho de volta para a casa, o amigo disse que percebeu uma viatura da PM os seguindo. O jovem, então, decidiu entrar em uma padaria, na Rua Rodovalho Júnior, para tomar um copo de água.

Segundo o depoimento, os policiais abordaram o amigo primeiro e depois fizeram o mesmo com Guilherme. Após realizar consultas e liberar os dois, os PMs teriam dito para os jovens seguir por caminhos diferentes: a testemunha pela rua da padaria e a vítima pela Rua Henrique de Sousa Queirós, próximo a trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM).

O amigo relatou que, ao retornar minutos depois, encontrou Guilherme caído nos trilhos, ainda com vida, e moradores da região gritando por socorro. O boletim de ocorrência diz que a vítima tinha ao menos três perfurações por arma de fogo nos membros inferiores, além de escoriações no corpo e de fraturas na perna esquerda e na mão direita.

“Meu filho desceu a passarela sozinho, mas eles já estavam esperando”, diz Ana Glória, que estranha o fato de o jovem ter sido levado pela ambulância ao Hospital Sapopemba, também na zona leste, mas a cerca de 15 quilômetros do local. “É longe demais”, diz. “Ele levou tiro até no joelho, sem ter feito nada. Meu filho correu baleado até a linha do trem – e o trem também pegou ele”, afirma. “O menino foi vivo até o hospital, gritando que não deixasse ele morrer.”

Hospital

Uma semana antes, Ana Glória havia ficado internada para tratar de problemas cardíacos. “Os vizinhos vieram correndo na minha casa, disseram que meu filho estava cheio de sangue”, conta. “Quando me deram a notícia que o trem pegou ele, quase que eu morro.”

Ela foi recebida no hospital por uma médica: Guilherme não havia resistido aos ferimentos. “Foi a pior notícia que eu tive no mundo… Ela falou que, na verdade, meu filho tinha sido baleado. Quando lembro dessas palavras, eu não sei nem o que dizer.”

Segundo a guia de encaminhamento de cadáver, ele sofreu “politrauma grave”, provocado por “múltiplos fatores”, como atropelamento, agressão e ferimentos por arma de fogo.

Para a Ouvidoria da Polícia, a diarista afirmou que o amigo de Guilherme foi ameaçado pelos PMs no hospital. “Cuidado aí porque você pode ir para o inferno junto com ele”, é o que os agentes teriam dito, segundo a denúncia feita no órgão. Uma das filhas dela também teria sofrido ameaças.

Investigação

No 10º DP, o amigo disse que acompanhou a vítima na ambulância e que Guilherme estava consciente. “Em nenhum momento, ele revelou como teria acontecido seu acidente”, relata no BO. Ainda segundo o registro, a testemunha afirmou que “não presenciou os policiais militares efetuando disparos” e “não ouviu estampidos”.

Um enfermeiro também relatou à Polícia Civil ter perguntado a Guilherme sobre a ocorrência, com o objetivo de saber se a vítima estava consciente. O jovem, então, teria respondido que foi baleado após tentar roubar uma motocicleta. “Ao ser questionado quem lhe alvejou, não respondeu.”

Os PMs negaram ter atirado contra Guilherme. Aos investigadores, eles afirmaram que faziam patrulha na região, onde há um ponto de ônibus com grande incidência de roubos, e que os dois amigos “passaram a olhar bastante para a viatura e para os lados”. Segundo os PMs, nenhum dos dois portava documento e Guilherme teria informado o nome de um irmão na hora de fazer a consulta – o que os PMs só teriam descoberto na delegacia.

Ainda de acordo com os agentes de segurança, foram os jovens que decidiram seguir por caminhos distintos. Os policiais também afirmaram que foram atender “outras ocorrências” e que souberam que Guilherme havia sido baleado apenas no fim da noite.

Os investigadores solicitaram exame residuográfico para os PMs e para a vítima – mas não apreenderam as armas dos policiais por considerar a medida “temerária”, uma vez que os agentes não teria se negado a prestar informações. “Ressalta-se que a vítima possuía projétil alojado em seu corpo, o qual poderá ser confrontado, a qualquer momento, caso necessário”, diz o BO.

À época, os policiais também registraram no BO a “necessidade de outras diligências” para “verificar a existência de câmeras no local da abordagem” e “no local em que a vítima foi encontrada”. Mais de quatro meses depois, a SSP diz, em nota, que “diversas testemunhas já foram ouvidas, assim como os PMs”.

“Atualmente, o inquérito está no fórum com pedido de prazo, para anexar os últimos laudos e dar prosseguimento à investigação”, afirma a pasta.

Ausência

Segundo os familiares, a versão de que Guilherme teria se envolvido em uma tentativa de assalto “é mentira”. “O enfermeiro inventou isso porque tem medo”, diz Ana Glória.

Segundo ela, o filho teve uma passagem pela Fundação Casa, aos 16 anos, após aceitar uma carona de um amigo que estava em um carro roubado. “O juiz mandou soltar em 15 dias. Depois disso, não teve mais nada, nada, nada.”

“Meu filho não era um menino solto, era meio bobão”, diz a diarista. “Ele tinha medo de chuva, de vento, de trovoada. Não tinha nada de errado, nunca me deu trabalho.”

Segundo a mãe, Guilherme trabalhava desde os 10 anos, lavando carro. Também estudava à noite. “Toda semana, ele me dava R$ 25, R$ 40 para comprar arroz, comprar feijão. Se você abrir meu armário, hoje, não tem nada. A gente tá passando necessidade.”

Ana Glória diz que não consegue mais trabalhar, sofre com problemas de falta de ar e que perdeu 19 quilos desde a morte do filho. No dia 31 de março, Guilherme faria 18 anos. “Tudo que ele me dizia era que não via a hora de ficar ‘de maior’ para trabalhar com carteira registrada e casar com a namoradinha. Queria se alistar no Exército. Isso que dói”, diz.

“Tenho chorado dia e noite, não vivo mais. Eles não acabaram só com a vida do meu filho: acabaram com a minha vida”, afirma a diarista. “Tem hora que eu falo: ‘Deus, me leva que eu quero acabar com esse sofrimento’.”

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