Uma música de fundo tenta recriar o clima épico. Projetado contra a parede, o slide expõe o tema da palestra: “O que é o sucesso?”. O coach Marcelino Fernandes – um homem de 54 anos, com uma careca reluzente, de terno bege e camisa bordô – dá conselhos à plateia enquanto caminha a passos firmes de um lado para o outro da sala. “Sonhos devem ser transformados em metas e metas em realidade. Mas, quando você sonhar, por favor, sonhe alto. Mire na Lua. Porque, se você errar, estará entre as estrelas.”

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Entusiasta do coaching, Fernandes está à frente de cursos motivacionais desde 2013. Embora calcule já ter palestrado para mais de 25 mil alunos, esta não é sua principal atividade. Fora da sala de aula, ele atende por coronel Marcelino, o corregedor-geral da Polícia Militar. Em outras palavras, é o responsável por chefiar investigações de crimes cometidos por policiais – ou contra eles – em São Paulo.

Na Corregedoria, o coronel Marcelino deveria cumprir um expediente de 11 horas, mas dificilmente segue o horário à risca. Para fiscalizar uma corporação com quase 85 mil homens e mulheres, o maior efetivo do Brasil, o comum é trabalhar a mais. Sob seu comando, o órgão atuou em uma série de casos emblemáticos, entre eles o assassinato da PM Juliane Duarte, executada pelo crime organizado em Paraisópolis, em 2018. Outro, mais recente, é o da morte de nove jovens após ação policial em um baile funk na mesma favela.

Já como coach, Fernandes costuma explorar a própria história em palestras. Filho de um cabo da PM, ele conta que trabalhou na juventude como auxiliar de garçom, vendeu pastel na feira e até engraxou sapatos em rodoviária. Hoje, no posto de oficial superior, recebe um contracheque mensal de R$ 25.237,98, segundo dados do Portal da Transparência do governo.

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No Youtube, há palestras de Fernandes com mais de 22 mil visualizações. Ele também acumula fãs nas redes sociais – só no Instagram, onde se apresenta como “PM de Cristo” e publica pílulas diárias de conselhos, são 9,7 mil seguidores. “Nunca desista… A realização de seu sonho pode estar para acontecer ainda nesse ano, acredite e já agradeça! O nome disso é fé!”, diz em uma das mensagens.

Para chegar à posição de comando na PM, um episódio da adolescência teria sido decisivo, segundo relata nos cursos. Certa vez, viu militares batendo continência para “um cara cheio de medalha, de quepe e coisas douradas”. Impactado pela cena, Fernandes teria comentado em voz alta: “Eu vou ser coronel”. Ao ouvi-lo, o pai, que era policial de baixa patente, reagiu. “Moleque, para de falar besteira.”

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O “segredo” seria o método “Mentalização Ativa Intuitiva para o Sucesso”, o Mais, do qual Fernandes se declara criador. Em resumo, o Mais consiste em mentalizar sonhos e objetivos, para alcançá-los de maneira mais prazerosa. “Se você tiver vontade interior e for sua missão, com certeza vai conseguir”, afirma o coach ao jornal O Estado de S. Paulo. “Todo mundo consegue dentro da sua crença, da ética, da honestidade. Tudo é possível.”

Aluna da primeira turma, a advogada Angela Bello aprova o método. “O curso me ajudou demais. Depois de participar, tomei coragem para abrir meu escritório e trabalhar por conta própria”, diz. Admiradora de Fernandes, a advogada Deomira Dias afirma que o coach a ensinou a “seguir um caminho que leve a algum lugar”. Segundo conta, foi por causa do curso que decidiu entrar na faculdade de Direito aos 50 anos.

Jornada dupla

Fernandes é membro do Instituto Brasileiro de Coaching (IBC) e da Sociedade Brasileira de Coaching (SBC), além de apresentar no currículo uma formação em programação neurolinguística (PNL). Para o coaching, ele diz aplicar conceitos de PNL e também de física quântica.

O best seller de autoajuda O Sucesso Não Ocorre Por Acaso (1992), do cardiologista Lair Ribeiro, foi a primeira inspiração de Fernandes. Entre as suas referências, ainda aparecem os filósofos brasileiros Clóvis de Barros Filho e Mario Sergio Cortella, além de Napoleon Hill, Joseph Murphy e Dale Carnegie – estes últimos, nas palavras do coach, “os três mestres do sucesso”.

Para manter sua formação atualizada e conseguir conciliar as jornadas de coach e corregedor-geral, Fernandes se acostumou a dormir quatro horas por dia. “Em dezembro, tiro férias e é quando acontece a maioria dos meus cursos”, diz.

Algumas das atividades são gratuitas. Já no Instituto Legale, onde Fernandes é diretor acadêmico e dá aulas de Direito Administrativo e Didática, é preciso pagar para fazer parte das turmas. O coronel também ministra cursos de curta duração que custam R$ 99.

Pelo regimento disciplinar da PM, nenhum policial pode trabalhar de forma remunerada fora da corporação – ainda que, na prática, o “bico” seja uma alternativa comum para driblar o salário baixo. As exceções são para atividades culturais ou educacionais, permitidas pela norma.

Professor de Direito Administrativo e Empresarial da Universidade Mackenzie, Armando Rovai afirma que a atuação do coronel Marcelino como coach é legal. “Desde que destinada ao conhecimento, eu não vejo problema nenhum”, diz. “Acho até salutar um servidor público, com experiência efetiva e preparo acadêmico, transmitir essa quantidade de conhecimento aos seus alunos.”

Especialista em Segurança Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), Rafael Alcadipani concorda que não há irregularidade, mas pondera que o corregedor-geral representa o órgão responsável por fiscalizar as regras da PM e, portanto, sua atividade fora da corporação pode incentivar outros policiais a cometer infrações. “Percebo que existe uma permissibilidade muito grande com relação aos bicos dos policiais por causa da situação financeira”, afirma.

Por sua vez, o coronel Marcelino é da visão que dificilmente outra atividade prejudica a rotina policial. “Não dá para ter um mecanismo para mensurar: ‘Está cansado? Está com bico’. Não dá pra fazer essa matemática”, afirma.

Em nota, a PM informou que foram instaurados ao menos 338 procedimentos disciplinares por “bico” até novembro de 2019. Desses, 130 policiais foram punidos por transgressão, os demais processos estavam em andamento.