Congresso ouve 4 mil discursos

Eles adoram falar de tudo e de todos – sobretudo deles mesmos. São 584 homens e mulheres em disputa permanente pelos microfones dos plenários da Câmara e do Senado. Brasília guarda um dos poucos parlamentos do planeta onde se conserva o ritual do expediente dedicado ao palavrório, com mais de quatro mil discursos em 500 sessões anuais, todos devidamente taquigrafados.

Brasília – Há exemplos brilhantes da retórica parlamentar nos arquivos do Congresso. Mas na atual temporada legislativa, o resultado dessa torrente diária de palavras freqüentemente é próximo do surrealismo – um retrato histriônico da fauna política traçado aos gritos no plenário. Dos mais assíduos ao microfone, Benedito de Carvalho Sá, o B. Sá (PSDB-PI), foi autor de um dos mais peculiares elogios fúnebres já feitos na Câmara. Ao falar sobre a morte de um conhecido, assim o definiu: "Homem antítese, dele se pode dizer que aumentou a população ao nascer e reduziu-a sensivelmente ao desaparecer".

Semanas atrás, num debate sobre emendas ao Orçamento da União para 2005, lamentava: "O que aconteceria se não houvesse essas emendas chamadas de fisiológicas e paroquiais? Ó, ignaros e rudes, não compreendem que o povo mora nos municípios e não no estado ou na nação!". O piauiense B. Sá cumpre seu terceiro mandato. Desta vez sem a parceria do amigo paraibano Vital do Rego, notabilizado por uma angustiada autocrítica: "Senhoras e senhores deputados, eu estou profundamente decepcionado comigo mesmo… Reduzi-me, gradualmente, a uma figura microscópica, pela impossibilidade de ser, e como gostaria de ser o que já fui e o que penso que deveria ser".

Plenário é um estuário de agruras, pessoais e coletivas. Nele, cada um vale um voto, mas os egos tornam a convivência difícil, observou Heleno Augusto de Lima (PP-RJ), o Dr. Heleno, que foi à tribuna comemorar as primeiras amizades, depois de 24 meses de mandato: "No primeiro discurso, chamei a atenção dos colegas porque uns passavam pelos outros sem se cumprimentar, como que animais. Aliás, os animais ainda se cheiram…".

Às vezes, o drama surge no aperto do botão do painel de votação, como aconteceu com Gonzaga Patriota (PSB-PE): "O senhor, presidente, sabe que fui criado no sertão, trabalhando na enxada. Não consigo mais colocar a impressão digital com o indicador. Pergunto como ficará minha situação, pois, de tanto montar no jegue e trabalhar no sítio, perdi a impressão digital e talvez não possa mais nem ir aos Estados Unidos, país que exige identificação".

Problema maior é a vida fora do Congresso: o eleitor anda furioso, diz Sarney Filho (PV-MA). "Quando cheguei, em 1983, usávamos o broche de deputado e onde quer que fôssemos, éramos distinguidos. Hoje, às vezes temos de escondê-lo, pois somos discriminados". Ênio Tatico (PTB-GO), dono de supermercados, reclama: "Às vezes, sou chamado de ladrão de cargas. Na campanha, a frase "ladrão de cargas" foi pichada nos meus outdoors, e nunca houve qualquer prova".

"Será que nossas cobras são burras?"

Brasília – Como simpatia popular é mercadoria escassa, restam os momentos de assembléia festiva. Assim foi quando Inocêncio Oliveira, então no PFL, completou 66 anos, dos quais 29 no plenário. O líder petista Luiz Carlos da Silva, o professor Luizinho (PT-SP), abriu os braços: "Um abraço carinhoso, por mais uma velinha nessa seqüência da vida! Não podemos dizer quantas são, para que as meninas fiquem curiosas!".

Ao microfone, tudo é permitido. Inclusive relatos como o da deputada Maninha (PT-DF) sobre uma viagem à Antártica: "Embarquei, no Rio, num avião da Força Aérea. Comigo embarcaram, além de tripulantes e passageiros, 11 pingüins que retornavam a seu habitat". Ricardo Zarattini Filho (PT-SP) viajaria para assistir às eleições nos EUA. Anunciou: "Não pretendemos influenciar na escolha do futuro presidente. Esta é uma decisão soberana do povo norte-americano".

Jamil Murad (PCdoB-SP) retornou da Faixa de Gaza com uma conclusão: "A destruição em massa do governo de Israel, contra os palestinos, não é boa para palestinos, nem para israelenses e nem para a humanidade". O senador Ney Suassuna (PMDB-PB) voltou impressionado da Ásia: "Na Tailândia, eles colocam as cobras para correr, enquanto as pessoas fazem apostas. Fiquei pensando: será que as cobras de lá são inteligentes e as nossas são burras?".

Trabalho duro mesmo é defender o governo. O estreante Irapuan Teixeira, o professor Irapuan (PP-SP), tentou: "Não somos burros; temos clareza de que a história caminha em direção ao ápice. A história não está em decadência". Quando falta argumento sobra retórica, demonstrou Paulo Delgado (PT-MG): "A língua portuguesa tem características que produzem confusões e possibilidades semânticas tão diversas que, se desatento, as possibilidades de interpretação serão diversas".

Raro é o dia, no plenário do Senado, em que não se escuta a voz e o sotaque piauiense de Francisco de Assis de Moraes, o Mão Santa (PMDB-PI). Seu estilo é picaresco: "Ó presidente Lula, atentai, escutai! Não escute só José Dirceu, de espírito cubano, de alma cubana e mentalidade cubana. Aqui está, ó, o homem do Piauí". Mas ninguém falou mais do que o amazonense Arthur Virgílio, líder do PSDB no Senado. Ocupou o microfone por 260 vezes, no ano passado. Numa delas, contou: "Convivi no palácio, sei que o áulico é uma figura perigosa… Hoje, quando o Lula experimenta um daqueles nós de gravata dele, alguém diz: "Presidente, o (ator Reynaldo) Gianechini perto do senhor é horroroso. A (atriz) Marília Gabriela se olhar para o senhor vai cair apaixonada na hora, porque o senhor é lindo". O áulico é assim. Depois do Carnaval, começa tudo de novo…

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