Desde que deixou a maternidade de Goiana, cidade a 62 quilômetros de Recife, em outubro de 2015, Alessandro se acostumou a passar os dias no berço ou no colo da mãe só de fralda, no máximo com uma bermudinha. Qualquer roupinha acaba incomodando naquele calorão que faz na casa de telha, três cômodos, onde o menino mora com os pais e a irmã Raysa, de 3 anos, em um loteamento irregular nas margens da BR-101. A alta temperatura justifica a forma com que a mãe dá banho no bebê: no tanque, com água fria mesmo.
Mais incômodo que o calor só mesmo a espera. Se Pérola sofre para conseguir transporte do sertão até a capital para fazer o tratamento, Alessandro não tem nem essa possibilidade. Ele já tem um ano, nasceu com microcefalia e, ao contrário do que recomendam todos os especialistas, até hoje ainda não começou as terapias de reabilitação. Não foi por falta de vontade da mãe, a dona de casa Rayane Gomes Mendes, de 19 anos.
Receber o diagnóstico da má-formação logo depois do parto foi um choque para a moça de aparelhos nos dentes que havia acabado de sair da adolescência. “No pré-natal estava tudo bem. Mas quando tiraram ele de dentro de mim, já perguntaram se eu tinha alguém de cabeça pequena na família”, relata. Nos dias seguintes, foi só desespero e tristeza. “Ninguém me explicava direito o que era esse negócio de cabeça pequena, e eu só chorava, perguntava para Deus por que ele tinha me mandado um filho assim. Não queria aceitar, pensei até em me matar”, conta a jovem. Mas nem tempo de sofrer sozinha Rayane teve. Já recebeu o encaminhamento para ir para Recife, único lugar onde conseguiria especialistas para avaliar seu bebê.
A primeira consulta com o pediatra do Hospital Universitário Oswaldo Cruz só foi marcada para janeiro, quase dois meses depois do nascimento de Alessandro. Os exames de imagem neurológicos para confirmar o diagnóstico foram feitos em abril, quando Alessandro estava para completar seis meses.
Em maio, a mãe do bebê finalmente conseguiu a guia de encaminhamento para a AACD, mas, por causa de toda a demora no processo e das dificuldades de viajar até Recife, encontrou a unidade sobrecarregada, consequência da baixa capacidade dos equipamentos próprios do SUS em atender a todos que precisam de serviços de reabilitação.
Desde que explodiu a epidemia de microcefalia, no ano passado, nenhum centro novo foi aberto no País, de acordo com o Ministério da Saúde. Na maioria dos Estados, o que aconteceu foi a adaptação e habilitação de serviços de saúde já existentes para atender a nova demanda.
Em Pernambuco, Estado com o maior número de casos, a maioria dos 392 bebês que tiveram o diagnóstico confirmado acabou sendo encaminhada para instituições filantrópicas conveniadas ao SUS, como a AACD e a Fundação Altino Ventura, ambas em Recife. Na primeira, são 200 crianças com microcefalia atendidas e outras tantas em lista de espera. Já a segunda dá assistência a 150 bebês e tem uma fila com outros 150 nomes aguardando vaga.
Alessandro está na fila das duas instituições. Em uma vai fazer fisio e fono. Na outra, passará por estimulação visual. Em maio, na época da primeira visita da reportagem à casa de Rayane, a mãe estava esperançosa de que o tratamento fosse, enfim, engrenar.
“Na semana que vem vou atrás das terapias e dos exames da vista e da audição. Às vezes não dá para ir porque eu fico sem o dinheiro do ônibus. E depender da prefeitura é complicado”, contou, na época.
Em Goiana, todos os pacientes que precisam fazer tratamento na capital embarcam no mesmo ônibus, que sai de madrugada passando nos vários bairros para recolher os doentes.
Se quiser utilizar esse transporte, Rayane precisa estar às 4h30 com Alessandro debaixo de uma das passarelas da BR-101. “E o motorista não espera nem um minuto. O pior é que vai sempre cheio. Já tive que ir três vezes de pé, porque ninguém se levantou para me dar o lugar”, conta ela, inconformada.
Pagar para ir para Recife em um ônibus de viagem é sacrificar o orçamento de R$ 1 mil da família, R$ 250 reservados para o pagamento do aluguel.
Depois de conseguir o encaminhamento, Rayane até procurou as unidades especializadas para que o menino iniciasse as terapias, mas as coisas não evoluíram como ela imaginava. Entre junho e outubro, Alessandro passou por três consultas de avaliação na AACD, mas ainda não iniciou as sessões de reabilitação. Esteve em consulta com o oftalmologista na Fundação Altino Ventura, mas espera há quatro meses os óculos e a vaga para as sessões de estimulação visual. O menino também aguarda as órteses que precisará usar nos pés e nas mãos para corrigir algumas posições ósseas e musculares prejudicadas pela microcefalia.
Para a mãe, a demora no início do tratamento é visível na evolução do quadro do filho. “Ele não senta, não se arrasta, não vira, não consegue pegar as coisas. Eu penso que se ele tivesse fazendo as fisioterapias já podia estar bem melhor, mas é só lista de espera, lista de espera”, irrita-se a mãe.
As sessões de fono ainda não iniciadas também fazem falta para o menino, que, com dificuldade de engolir provocada pela microcefalia, continua se alimentando só de leite. “Ele não consegue comer comida pastosa, não, e eu também prefiro não dar porque ele pode engasgar”, diz Rayane.
Sem auxílio profissional, são os pais os responsáveis por tentar desenvolver as habilidades do menino. Recentemente, a família ganhou um cavalinho que pisca e toca música, o que ajuda a estimular os sentidos de Alessandro, além de arrancar sorrisos do bebê.
O primeiro ano de vida de Alessandro despertou um amor diferente em Rayane. “Antes eu não queria aceitar, não tinha paciência com a vida. Perguntei para a médica se poderia ter cura, se teria algum remédio para desenvolver a cabeça, mas ela disse que não, que ele seria assim até quando Deus quisesse, e aos poucos eu mudei meu jeito de cuidar, meu jeito de amar”, diz, com ternura, admirando o filho.
Ao mesmo tempo, o primeiro ano de vida do bebê, marcado pelo desamparo, aumentou a revolta de Rayane. “Eu achei que as coisas iam ser melhores para a gente, que o governo ia dar uma atenção. Eu não tenho tratamento na minha cidade nem um transporte decente para o meu filho”, reclama.
Mas nada chateia mais a jovem do que o desamparo familiar. Brigada com o pai e órfã de mãe, Rayane muda a feição quando pensa em tudo que tem passado sozinha. O marido, o mecânico Alexsandro Cosmo da Silva, de 23 anos, passa o dia inteiro fora, trabalhando.
Sobra para Rayane as tarefas de casa e o cuidado de Alessandro e Raysa. Com ciúmes, a filha mais velha não aceitou bem a chegada do bebê e tem dado mais trabalho à mãe.
“Me perguntam se eu tenho pai, eu falo que não tenho. Outro dia tive que ficar uma semana com Alessandro no hospital porque ele pegou uma pneumonia e ninguém foi me ajudar. Sabem que eu tenho uma criança especial e não estão nem aí”, lamenta ela.
A briga com a família já é de longa data, desde que Rayane decidiu, aos 15 anos, namorar Alexsandro. “Meu pai queria que eu namorasse um amigo dele, mas eu não queria. Eu saía escondida para encontrar com o Alex e, quando voltava, ficava roxa de pau. Apanhava mesmo. Quando minha mãe morreu, decidi fugir e fui morar com o Alex.”
A revolta também aparece quando Rayane lembra de episódios de preconceito. “Às vezes eu estou andando com Alessandro e o povo fica se cutucando, apontando para ele. Eu logo digo: meu filho é gente, não é bicho, não”.
Na esperança que o menino consiga a assistência que toda pessoa merece, Rayane sonha em ver no filho a evolução que não pôde comemorar no primeiro ano de vida do bebê. “A gente quer ver ele falar mamãe, papai e tudo, mas a maior glória vai ser se ele andar. Se isso acontecer já vou estar satisfeita.”