Cabo Bruno chegou vestindo casaco e luvas pretas de couro em um boteco na Estrada do Alvarenga, em Pedreira, zona sul de São Paulo. Ele estava nervoso e pediu um copo de leite. Eram 23 horas de uma noite de 1982 e sua fama de matador já começava a se espalhar pela região. O leite foi colocado em cima do balcão. Antes de beber, Bruno puxou, um a um, os dedos de sua luva preta. Ele tinha nojo de leite coalhado e queria pescar as natas. Quando colocou as mãos nuas no copo, o líquido branco se avermelhou.
A atendente, amiga do policial, olhou para ele assustada. Sabia que era sangue e Cabo Bruno acabara de matar alguém. “Eu estava encerando a minha casa”, disse ele, tentando dissimular. No dia seguinte, o corpo esfaqueado de um suposto estuprador amanheceu jogado em uma picada que cortava a favela da Vila Selma na direção do ponto de ônibus.
Cenas cinematográficas como a do leite com sangue, relatadas na semana passada ao jornal O Estado de S. Paulo, por amigos e parentes do ex-justiceiro, fizeram parte da trajetória de Florisvaldo de Oliveira, cabo da PM que há 30 anos se tornou “exterminador de bandidos”. Agora, a história de Cabo Bruno e de seus anjos e demônios vai ser filmada pelas produtoras C2 Filmes e HS Filmes, que compraram os direitos da pastora Dayse França, viúva de Florisvaldo.
A ideia é lançar o filme em setembro de 2014 e usar o dinheiro para criar uma fundação para ajudar presos que ganham a liberdade e não têm para onde ir. Os produtores querem chamar o ator Murilo Benício para o papel principal.
Carta a Lula
Cabo Bruno foi detido pela primeira vez em 1984 e fugiu três vezes da prisão. Ficou trancafiado por 21 anos, período em que se tornou evangélico. Trinta e quatro dias depois de ganhar a liberdade e dois dias depois de virar pastor, em setembro do ano passado, foi assassinado com 18 tiros. Tinha 53 anos ao morrer.
Além de antigas reportagens e depoimentos de testemunhas, os produtores querem ter acesso à carta que Florisvaldo escreveu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva em março de 2009, para obter indulto. O Estado obteve a carta onde Florisvaldo narra parte de sua vida em 22 páginas. O jovem que veio de Catanduva, no interior, para se tornar o justiceiro mais famoso da cidade dizia ter assassinado mais de 50 pessoas.
“Quantas vezes prendia ladrões, estupradores, etc, levava-os para o Distrito Policial e era comum depararmos com eles em liberdade (pois a corrupção era grande nas delegacias). Vendo o sofrimento das vítimas, essa revolta foi tomando vulto em meu íntimo, até que em 1982 ela explodiu. Seguindo péssimos exemplos de outros companheiros de farda, inclusive oficiais, comecei a infeliz e trágica caminhada de fazer justiça pelas próprias mãos.”
Na semana passada, o jorna O Estado de s. Paulo voltou a Pedreira para tentar encontrar antigos amigos e testemunhas das ações de Cabo Bruno nos anos 1980. A casa onde morava o policial se tornou um salão de cabeleireiro. Alguns comerciantes não quiseram falar porque ainda temem represálias. Outros relembraram o período, com a condição de não terem o nome revelado.
Bruno falava para os vizinhos que tinha um caderninho onde anotava nomes de pessoas com longas fichas na polícia juradas de morte. Mesmo depois de ter criado inimizades, era visto lavando seu famoso Opala preto na frente de casa, desarmado e sem camisa. Os comerciantes o ajudavam moderadamente. Pagaram o enterro do filho dele, Bruninho, por exemplo, morto por uma criança de 11 anos numa disputa de pipa – na época, Bruno já estava preso.
A primeira vítima que Cabo Bruno matou, segundo se recordam os vizinhos, foi Ademir da Cruz Correia, jovem que costumava passear pelo bairro com um cão rottweiler. Havia boatos de que era bandido. Ademir também passou a assediar uma jovem de 14 anos, parente de um comerciante da região. Bruno comprou as dores da família. Antes de matar, torturou o jovem em um pau de arara. “Até hoje, eu tenho dúvidas. Não sei se de fato Ademir teve alguma culpa ou tinha feito algo errado”, diz uma testemunha.
Depois, ele ainda organizou uma chacina de seis trabalhadores em uma loja de móveis de bambus – dizia que os mortos também eram traficantes. A uma amiga, Bruno confessou que passou a gostar de matar. Ele colocou a culpa no diabo, que o induziu a assumir o papel sagrado de definir quem pode ou não viver. E morreu em paz, convertido, crendo que o diabo havia deixado seu corpo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.