Brasília: o povo cobra a aprovação do projeto na frente do Congresso Nacional. |
O Brasil lembra esta semana os 20 anos de uma das maiores manifestações populares da história política nacional: o movimento “Diretas Já”. Deflagrado para tentar garantir a aprovação da emenda constitucional do então deputado federal Dante Oliveira (MDB/MT), que propunha a eleição direta para presidente da República, o movimento acabou frustrado pela maioria governista do Congresso Nacional, alinhada ao então presidente João Baptista Figueiredo.
Dia 25 de abril de 1984: milhares de pessoas tomam conta da Esplanada dos Ministérios para pedir eleições diretas já. Mesmo diante de policiais militares armados, a multidão permanece nas largas avenidas e no extenso gramado que leva à Praça dos Três Poderes, no triângulo em cujos vértices estão o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.
O Brasil ainda está sob comando dos militares, que haviam tomado o poder em 1964. O presidente da República é o general João Baptista Figueiredo. No plenário da Câmara dos Deputados, o clima é tenso. Os parlamentares aguardam o início da votação da Emenda Constitucional n.º 5, de autoria do jovem deputado Dante de Oliveira (MDB-MT), com a proposta de eleições diretas para presidente da República, suspensas há 20 anos. O deputado Ulysses Guimarães (MDB-SP), conhecido como “Senhor Diretas”, usa uma gravata amarela. E antecipa, em discurso que seria interrompido 23 vezes pelos aplausos: “A Pátria é o povo e o povo vencerá. Pode ser hoje, pode ser amanhã, mas é inevitável. E não demora”.
Já irrompe a madrugada do dia 26 de abril de 1984 quando a emenda Dante de Oliveira é derrotada, após 17h de discussão, por 298 votos a 65. Faltaram 22 votos para chegar à maioria de dois terços, necessária à aprovação da proposta de modificação da Constituição. É a última derrota sofrida pela democracia brasileira, depois de uma longa série iniciada em outra madrugada, a de 1.º de abril de 1964, vinte anos antes, quando uma insurreição militar depôs João Goulart. Lá fora, o comandante Militar do Planalto, general Newton Cruz, montado num cavalo branco, chicoteia os carros que buzinam e ameaça prender todos os que vestem roupas amarelas – a cor que virou símbolo da campanha.
Sabor de vitória
O País ainda esperaria cinco anos até poder voltar às urnas, mas a derrota da emenda de Dante teve sabor de vitória. Mesmo com eleição indireta, poucos meses depois, Tancredo Neves, candidato do MDB, derrotaria Paulo Maluf (PDS), aliado dos militares. Coube ao Colégio Eleitoral, mecanismo criado pela ditadura militar, decidir a eleição a partir de uma lista submetida ao voto de 686 parlamentares.
Entre os deputados que votaram contra as eleições diretas estão os pedessistas Sebastião Curió (PA), Ricardo Fiúza (PE), Ângelo Magalhães (BA), Amaral Neto (RJ), Siqueira Campos (GO), Adhemar Ghisi (SC) e Pratini de Morais (RS). Ausentaram-se Rita Furtado (RO), Gerson Peres (PA), Edison Lobão (MA), Ernani Satiro (PB), Álvaro Gaudêncio (PB), Prisco Viana (BA), Simão Sessim (RJ), Cristovam Chiaradia (MG), Cunha Bueno (SP) e Paulo Maluf (SP).
De última hora, com voto a favor das diretas, alguns parlamentares do PDS surpreendem: Sarney Filho (MA), Paulo Lustosa (CE), José Jorge (PE), Alberico Cordeiro (AL), Fernando Collor (AL), Alvare Valle (RJ), Aécio Cunha (MG), e Alceni Guerra (PR).
Paraná fez o “comício da virada”
O PMDB, PDT, PT e PCdoB adotaram a mobilização pelas eleições diretas, apadrinhadas também pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), União Nacional dos Estudantes (UNE), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Central Única dos Trabalhadores (CUT) com o apoio de sindicalistas, empresários, intelectuais e artistas. A campanha vai para as ruas em todo oPaís.
Em 12 de janeiro de 1984, a Boca Maldita, em Curitiba, abrigou o primeiro grande comício do movimento no ano em que a emenda Dante Oliveira foi votada. O protesto marcou o início da chamada “Campanha pelas Diretas Já” e que, depois, tomou corpo em todo o Brasil. A manifestação registrou a presença de cerca de 50 mil pessoas e de algumas das maiores lideranças políticas do país: os ex-governadores José Richa (PMDB), Franco Montoro (SP) e Leonel Brizola (RJ). Em 8 de dezembro de 1984, Tancredo Neves esteve na Assembléia Legislativa para pedir apoio ao projeto.
Festa-comício
O primeiro comício do início do movimento atraiu cerca de 8 mil pessoas em Goiânia (GO), no dia 25 de junho de 1983. Mas na opinião de Ulysses Guimarães, “essa coisa vai pegar, tem tudo para pegar”. No dia 29 deste mesmo mês forma-se no Rio de Janeiro uma frente suprapartidária, que reúne no Palácio da Guanabara os governadores Leonel Brizola (RJ) e Franco Montoro (SP), e o presidente nacional do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. Outros governadores se engajam ao movimento, entre eles Waldir Pires (MDB), da Bahia; Roberto Magalhães (PDS), de Pernambuco; e Gerson Camata (MDB), do Espírito Santo.
O PT, apoiado pelo MDB (hoje PMDB) e pelo PDT, realiza a festa-comício pelas diretas em 27 de novembro de 1983, no Estádio do Pacaembu (SP), à qual comparecem 15 mi pessoas. Nesta data, morre o senador Teotônio Vilela, o “porta-voz” das diretas e um dos mais apaixonados pela proposta. Outros comícios no país atraem um número cada vez maior de torcedores pelas eleições diretas. Em Teresina (PI), lembra o então repórter Ricardo Kotscho, hoje secretário de Imprensa da Presidência da República, o vereador Deusdete Nunes (MDB), mais conhecido por “Garrincha”, resumiu o que todos os oradores antes falaram num poema de cordel: “Queremos um presidente/ que seja do nosso meio/ de general a general/ estamos de saco cheio./ Viva a eleição direta/ vade retro ‘Revolução’/ adeus 20 anos de força/ vinte anos de inflação/ vinte anos mais secos/ do que a sede do sertão”.
Os comícios gigantes, na reta final da campanha, aconteceriam no Rio de Janeiro, em 10 de abril, e em São Paulo, em 16 de abril de 1984. No Rio, cerca de 300 mil pessoas se concentram na Praça da Candelária. Em São Paulo, os organizadores contabilizam 1 milhão no Vale do Anhangabaú. Nos palanques, ao lado dos políticos, os artistas eletrizam as multidões. E Osmar Santos, o locutor das diretas, avisa: “Estamos chacoalhando o Brasil. Aqui estão as esperanças de 130 milhões de brasileiros”.
Osmar Santos, a “voz oficial” do protesto
São Paulo – “Diretas quando? Já!!!”. A frase é de Osmar Santos, pronunciada com dificuldade. Vítima de um acidente de carro em 1994, o locutor das Diretas, hoje com 54 anos, perdeu quase toda a capacidade de comunicação: leitura, escrita e fala. Mas ainda tem consciência e memória plenas. Osmar lembrou momentos dos comícios e, emocionado, disse que sente saudade de Ulysses Guimarães e Mario Covas. Ele deu notas para o ex-presidente Fernando Henrique e para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, companheiros de palanque 20 anos atrás.
“Dez para os dois (nas Diretas). Mas saudade de Ulysses e Covas”, disse.
Com a mão direita paralisada, Osmar usa a esquerda para pintar. Também tem participado de comemorações pelos 20 anos das Diretas. Em novembro, a pedido da Fundação Perseu Abramo, fez um quadro com a bandeira brasileira e escreveu nele “Diretas Já”. O locutor das Diretas reuniu os filhos Victor, de 18 anos, e Nívea, de 15, para receber a reportagem.
“O que mais me emociona é ver, em vídeos e fotos, meu pai liderando a massa apenas por idealismo, sem ter recebido um centavo ou se beneficiado com cargos”, diz Victor. Osmar ainda é diretor de jornalismo esportivo da Rádio Globo, onde trabalha com o irmão, Oscar Ulisses.
Tancredo vence, mas não assume a Presidência
Com a rejeição da emenda, a decepção toma conta do país. Estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas e gente simples do povo protestam e decidem manter a luta para escolher o presidente do Brasil. O deputado Ulysses Guimarães (MDB-SP) e o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva haviam sido os principais responsáveis pela mobilização popular que levou milhares de pessoas aos 30 comícios organizados de 12 de janeiro a 16 de abril de 1984.
E não desistiriam do propósito de restabelecer a normalidade democrática no País. Definem o nome do ex-governador Tancredo Neves (PSD-MG) como candidato à Presidência da República na eleição indireta. A chapa oposicionista tem José Sarney como candidato a vice e acaba derrotando a do ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, candidato avalizado pelos militares, no dia 15 de janeiro do ano seguinte.
Tancredo
Um dia antes da posse, marcada para 15 de março de 1985, Tancredo Neves é submetido a uma cirurgia para a retirada do divertículo, no Hospital de Base de Brasília. Seu estado de saúde se agrava e ele é removido para o Instituto do Coração (Incor), em São Paulo. Depois de uma acirrada discussão envolvendo políticos e juristas, decide-se que a posse temporária de José Sarney não está em desacordo com a legislação eleitoral e a Constituição.
Mais de um mês depois, no dia 21 de abril de 1985, Tancredo Neves morre. Sarney assume em definitivo e torna-se o último presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, dando início ao processo de redemocratização do País. A Constituição de 1988 resgataria os compromissos democráticos, cassados pela ditadura.
Incêndio provoca suspeitas no Rio
Rio – Três focos de incêndio e um mistério que perdura até hoje: o que pretendiam os homens que tentaram botar fogo no prédio de número 502 da Avenida Presidente Vargas, na noite de 10 de abril de 1984? Testemunhas que passaram horas tentando debelar as chamas não têm dúvidas. Os incendiários, dois ou três homens, vestidos de preto, que escaparam pela cobertura, planejavam sabotar o comício da Candelária, que, naquela noite, atraíra um milhão de pessoas, espalhadas por toda a avenida.
A polícia abriu inquérito e a perícia concluiu que o incêndio – em três andares e três horários diferentes – fora criminoso. A investigação, porém, chegou ao fim classificando o episódio de “coisa de amador” e sem apontar culpados. Já sindicatos e grupos de esquerda que tinham transformado o edifício numa espécie de quartel-general da organização do comício tinham outra versão: quem planejara a ação queria parecer amador.
Mas para que nada desandasse antes da votação da emenda Dante de Oliveira, marcada para dali a 15 dias, os grupos de esquerda preferiram o silêncio. Ainda mais porque tinham muito viva a lembrança dos atentados a bancas de jornais, no início dos anos 80, praticados por comandos de direita e atribuídos à esquerda para desestabilizar a volta da democracia.
“Sabíamos que a ditadura estava agonizando, mas não dava para afirmar que acabara. Concluímos que era melhor não divulgar a história. Só não tenho dúvidas de que foi atentado”, diz o ex-diretor do Sindicato dos Petroleiros Vladimir Mutt, um dos responsáveis pela organização do comício e pela segurança do prédio 502.
O esquema de segurança do prédio previa a vistoria dos 22 andares de dez em dez minutos. O primeiro foco de incêndio, no sexto andar, foi descoberto por volta das 18h. Não causou suspeita e as chamas foram rapidamente apagadas. As dúvidas esquentaram quando, às 19h30m, surgiu o segundo foco, no 16.º andar, na caixa da fiação elétrica e telefônica. No local havia uma estopa embebida em combustível e fósforos.
“Aí decidimos tirar todos do prédio. Avisei que quem ficasse seria tratado como suspeito. E chamamos os bombeiros, discretamente, para não assustar a multidão”, disse.
Alheio.
Por volta das 22h, um funcionário ouviu passos no telhado – as coberturas entre a Rua Uruguaiana e a Avenida Rio Branco são interligadas, facilitando a passagem de um prédio ao outro. Os organizadores do comício foram até lá e ainda puderam ver os homens correndo. Eles haviam arrombado com um pé de cabra a porta do prédio ao lado, onde funcionava o Detran, e tentaram botar fogo na casa de máquinas do 502.
“Não tenho dúvidas de que salvamos muitas vidas. Imagine a confusão que seria um incêndio na presidente Vargas. E quem garante que os incendiários não planejavam também jogar alguma coisa na multidão?”, diz Ivan Pinheiro, então presidente do Sindicato dos Bancários e integrante da comissão organizadora do comício.
Alheia à confusão, a multidão aplaudia com fervor os discursos de Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Franco Montoro. Os integrantes da Fla-Diretas estavam entre os mais entusiasmados – ao longo dos últimos meses eram a sensação no Maracanã.