Números dão a dimensão de uma tragédia. O deste dia 24 é: o Brasil atingiu a marca de 250 mil mortos por Covid-19, em uma contabilidade crescente e assustadora. Os dados são aferidos com as secretarias estaduais de Saúde pelo consórcio dos veículos de imprensa formado por Folha de S.Paulo, UOL, O Estado de S. Paulo, Extra, O Globo e G1 para reunir e divulgar os números relativos à pandemia.

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O número macabro foi atingido às 18h03 desta quarta-feira, pouco mais de 24 horas antes de se completar um ano do registro oficial do primeiro caso no país. Até o início da noite, e ainda sem as informações de Amapá e Roraima, o Brasil havia contabilizado 1.420 mortes por Covid e 64.038 casos em um dia, o 35º dia com média móvel de mortes acima de 1.000.

Essa média móvel, um recurso que pondera os dados de sete dias para corrigir distorções estatísticas causadas por soluços no registro de dados, alcançou nesta mesma data seu maior patamar em toda a pandemia: 1.127. O recorde anterior fora registrado havia apenas 10 dias, 1.105 óbitos.

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Dessa forma, já são, desde o início da pandemia, 250.066 óbitos e ao menos 10,3 milhões de infecções confirmadas —um número possivelmente aquém do real, dada a subnotifcação.

Em mortes diárias, o país vive agora o pior momento da pandemia aprofundado pela disseminação das variantes do coronavírus —mais transmissíveis— já encontradas em 17 estados do país e por uma gestão atabalhoada da imunização, com registros de falta de vacina pelos estados.

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Desde que foi declarada a pandemia de Covid-19, em 11 de março de 2020, duas semanas após oprimeiro caso registrado no país, boletins epidemiológicos têm mostrado com números o rastro de destruição deixado pela maior crise sanitária dos últimos cem anos.

Vidas perdidas

Por trás dos números, estão pessoas e suas famílias destroçadas pelo coronavírus, um impacto impossível de aferir com precisão.

A reportagem ouviu essas famílias. Os relatos incluem tentativas de suicídio, sumiço de corpos, perda da única fonte de renda e a dor de ver os corpos de parentes enterrados em valas comuns ou sozinhos no leito de morte, não raramente UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) bem longe de casa.

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Elaborar o luto nessas condições tem sido a tarefa mais penosa na vida de Adrianne, Natália e Sarah. A reportagem tentou reunir mais relatos, mas muitas pessoas não quiseram falar por ainda não conseguirem reviver em palavras a dor que carregam.

A pedagoga Adrianne Medeiros, 35, aceitou falar de seu luto com a condição de não ter sua foto divulgada nesta reportagem. Ela diz que após dez meses da morte de seu marido, o supervisor de vendas Diogo Guimarães, 38, completados nesta terça-feira (23), é hora de se autopreservar.

Adrianne diz não saber quando terá sua vida de volta nos trilhos. Diz ainda dormir ao lado das roupas do marido e, quando sai de casa, borrifa o perfume que ele mais gostava sobre ela mesma “para continuar sentindo ele perto”.

Pela casa, os porta-retratos de Diogo continuam no mesmo lugar. “E sou criticada por isso. Há uma pressão das pessoas que estão me vendo de fora para eu voltar a namorar, a trabalhar, a viver. Mas gente: eu estou vivendo. Me deixem”, diz.

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A carioca vive com a filha, de 15 anos, na cidade do Rio de Janeiro e ainda não conseguiu entender por que Diogo não resistiu à doença justamente após ser retirado do respirador.

Era 23 de abril, dia de São Jorge, o santo de devoção de Adrianne. O combinado era levar Diogo para casa depois da melhora de seu estado de saúde. “Mas eu o levei para o cemitério”, diz ela, que também contraiu a Covid ao ter contato com o marido, mas manifestou sintomas leves, apesar de ser asmática.

Adrianne conta que tentou se matar. Foi resgatada por uma prima que mora bem perto da casa dela. “Eu só me lembro dos bombeiros na minha casa”, diz.

Nesses dez meses sem Lord, apelido de Diogo, ela vem fazendo de seu corpo uma plataforma para elaborar o luto. Já são 15 tatuagens. Uma delas está assim grafada: IgG19.

As letras são uma referência ao exame que detecta a produção de anticorpos para a Covid, representada pelo número 19 da tatuagem. Ela também criou um grupo de WhatsApp chamado “Guerreiras da Pandemia”, que reúne mais quatro amigas que perderam maridos ou irmãos para o coronavírus.

“Eu sei que o nome do grupo é ruim. Mas é o lugar que temos para xingar, chorar e expressar nossas oscilações de humor porque é assim: só quem perdeu alguém muito próximo para a Covid é capaz de entender o que eu estou sentindo”, diz.

Sem despedida

De Fortaleza, no Ceará, a família de Sarah Pereira Lucas Melo, 20, não conseguiu nem enterrar o corpo de Raimunda de Paula Melo, 90, um caso que revela a má gestão da pandemia, persistente.

A idosa morreu no dia 13 de maio de 2020 após dar entrada no serviço de saúde do bairro Itaperi, e seu corpo desapareceu depois disso. A reportagem acompanha o desenrolar do caso desde setembro do ano passado.

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“É como uma história com começo e sem final. Isso vai martirizando a gente de um jeito. É desumano, é criminoso”, diz a neta. Em maio do ano passado, o sistema de saúde de Fortaleza beirava o colapso pelo aumento súbito de casos e mortes muito aquém da capacidade da rede instalada de leitos para atender a doença.

O que a família de Raimunda aguarda é o cumprimento de uma ordem judicial para saber se os restos mortais da idosa estão enterrados numa das covas do cemitério Parque Bom Jardim, um dos espaços públicos para enterros mais demandados na pandemia.

O advogado Valdir Neto, que representa a família de Raimunda, informou que a exumação ainda não foi realizada e, que a demora, “é um sinal claro de desrespeito dos direitos humanos”, afirma.

“O que me deixa mais triste é que se a minha avó tivesse sido atendida com dignidade ela talvez pudesse estar aqui conosco e já imunizada”, afirma a neta.

Com saudades e em dificuldades

Da periferia de São Paulo, a família de George Francisco Gomes, 50, um dos mortos pela Covid-19, busca se reerguer da perda do motorista, que já prestou serviços para o jornal Folha de S.Paulo e para a Uber.

Sem George, a família teve dificuldades financeiras e precisou de auxílio de amigos do motorista para conseguir manter a alimentação em casa. “A gente viu que quem mais tem sofrido com essa pandemia é a população pobre, preta e periférica”, diz Natália Gomes, uma das filhas do motorista.

A historiadora Elisana Trilha Castro, atual presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, olha os 250 mil mortos por Covid para além do número em si. “O número traz demandas, e essas pessoas que passaram por tantas situações difíceis precisam ser olhadas nas políticas públicas de reparação do luto.”

São pessoas, acrescenta Castro, que perderam seus arrimos de família; crianças ficaram órfãs na pandemia. “Não sei o que será delas sem uma política social forte”.