Mais de dois meses depois de anunciar a campanha de vacinação contra o novo coronavírus, finalmente o Brasil vê o ritmo de aplicações diárias de imunizantes ganhar fôlego.

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Praticamente constante desde o início da campanha, em janeiro, a curva de vacinação passou a subir após o uso das reservas da segunda dose ser liberado pelo Ministério da Saúde, há dez dias.

No dia 20 de março, a média móvel diária de brasileiros imunizados com a primeira dose era de 293 mil. No dia seguinte, o ministério deu sinal verde para que os estados esvaziassem os estoques, o que fez a quantia dobrar para 592 mil na terça (30).

Mesmo assim, a velocidade é preocupante para um país que passa pela sua fase mais aguda da pandemia, e há engasgos: sete estados usaram apenas a metade do total de unidades que receberam, ou menos que isso, segundo seus próprios dados, coletados pelo consórcio de veículos de imprensa integrado por Folha de S.Paulo, UOL, G1, O Globo, Extra e O Estado de S. Paulo.

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É o caso de Acre, Roraima, Rio de Janeiro, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso e Amazonas. Na outra ponta, estão São Paulo, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul, que dizem ter aplicado mais de 80% das doses obtidas, puxando a média do país como um todo para 67% –isto é, de cada 3 doses entregues, 2 foram aplicadas.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), chegou a questionar nesta quarta (31) a disparidade. “Por que o Brasil distribuiu 34 milhões de doses de vacina e nós só temos 18 milhões de doses aplicadas?”, disse, descartando “má vontade ou má fé” dos estados e municípios.

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As explicações, segundo as unidades federativas com maior descompasso, são basicamente três. Primeiro, metade dos lotes da Coronavac estava sendo guardada para a segunda aplicação até a liberação do Ministério da Saúde no dia 21.

Segundo, muitas cidades enfrentam falta de infraestrutura e de pessoal para inserir os dados no sistema do Programa Nacional de Imunizações (PNI), assim como falhas na própria plataforma.

“Temos muita dificuldade em alguns municípios com relação à internet, e o sistema é muito instável, passa dois, três dias sem funcionar”, diz Tayara Pereira, superintendente de epidemiologia e controle de doenças do Maranhão.

Para driblar os problemas, ela diz que o estado contratou técnicos de enfermagem e digitadores, montou uma equipe de call center que auxilia os municípios e enviou um grupo para locais que enfrentavam dificuldades com o sistema.

Mato Grosso também argumentou que “existe um descompasso entre a realidade da aplicação da vacina e a alimentação do sistema”, e Minas Gerais acrescentou que as equipes estão sobrecarregadas. O Rio de Janeiro não respondeu nem indicou porta-voz.

O terceiro motivo que explica tantas doses não aplicadas no país é a dificuldade em vacinar indígenas, quilombolas e ribeirinhos, segundo estados do Norte como Acre, Amazonas e Roraima.

De acordo com o secretário de Saúde roraimense, Marcelo Lopes, sua região tem dois distritos com mais de 700 aldeias onde só se chega de avião, helicóptero ou longas viagens de carro. É lá que as pessoas que ainda não foram vacinadas estão.

“Roraima é o estado com a menor população do Brasil e a terceira maior população indígena aldeada. A troca de equipes e transporte de mantimentos leva de 15 a 30 dias, o que faz com que demore cerca de 60 dias para as imunizações serem concluídas”, afirma.

No Acre, a situação é a mesma: “[As equipes] relatam dificuldade de acesso, e alguns indígenas se recusaram a tomar. Está sendo feito um trabalho em relação a isso. Além do tempo que levam para ir, voltar e jogar a atualização no sistema”, diz a médica Paula Mariano, secretária-adjunta de Saúde.

Ela afirma que chamou os secretários municipais para uma conversa quando percebeu o baixo índice de aplicação (41%, o pior do país). Eles responderam que o estoque estava zerado, mas que não tinham conseguido atualizar os dados por falta de funcionários.

O Amazonas, que aplicou 51% das doses, enfrentou os mesmos problemas para vacinar essas comunidades. O estado foi o único que teve uma queda no ritmo de vacinação nas últimas semanas, na contramão do restante do país.

Segundo a enfermeira Adriana Elias, diretora do departamento de vigilância epidemiológica amazonense, isso tem acontecido justamente porque o estado ingressou na fase 4, de imunização de povos ribeirinhos e quilombolas.

“Atualmente nossas equipes de saúde estão em campo. Como são áreas mais distantes, de difícil acesso, não temos como ter essas informações diárias, tem um delay de retorno. Em outros municípios há dificuldades pela questão da cheia”, diz.

Todos esses gargalos resultam numa baixa cobertura vacinal: apenas 22% dos grupos prioritários haviam sido vacinados até esta terça no Brasil, o equivalente a 10% da população adulta em geral. Se levarmos em conta a segunda dose, a cobertura é ainda menor, de 6% e 3%, respectivamente.

Alguns estados que estão abaixo dessa média também estão na lista dos que menos aplicaram as doses recebidas até aqui. O Mato Grosso, por exemplo, só vacinou 14% dos pacientes de risco e o Rio de Janeiro, 15%. Ambos têm um ritmo mais estagnado na imunização, se comparados às outras regiões.

Entre os estados que atingiram menor cobertura vacinal, também estão aqueles que receberam proporcionalmente menos doses do Ministério da Saúde. Até esta quarta, o Amazonas, por exemplo, já havia recebido vacinas suficientes para a primeira dose de 88% da população alvo, enquanto o Espírito Santo conseguiria imunizar apenas 38%.

Em nota, a pasta diz que o cálculo de distribuição leva em consideração o público-alvo contemplado em cada nova remessa, definido pelo plano nacional, e a população de cada local. Também afirma que os dados são abastecidos pelos próprios estados e municípios, e que podem ocorrer atrasos nas informações.

A boa notícia é que agora a entrega de vacinas pela Fiocruz e pelo Butantan deve ser contínua, caso não haja problemas no fornecimento de insumos e na cadeia de produção, o que deve acelerar a imunização.

“Daqui para frente provavelmente não vamos mais observar essas oscilações que víamos nas vacinações por causa da inconstância no envio de doses. A partir de maio, junho, o Brasil deve estar voando na campanha, mas muito tarde, já com mais de 400 mil mortos”, pondera Jesem Orelana, epidemiologista da Fiocruz do Amazonas.

Se continuar no ritmo das duas últimas semanas, o país deve levar cerca de 21 dias para atingir 1 milhão de vacinações por dia, considerando apenas as primeiras doses. Essa foi a capacidade brasileira aproximada na campanha da gripe do ano passado, já durante a pandemia do novo coronavírus.

Segundo o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, o país tem capacidade ainda maior, de distribuir até 2,4 milhões de vacinas por dia. “Mas precisamos de vacinas aqui, e isso não é fácil”, disse em audiência na Câmara dos Deputados nesta quarta.

É a mesma visão de secretários estaduais e municipais de saúde. “Temos capacidade de vacinar mais de 2,5 milhões de pessoas por dia, mas precisa ter vacina”, disse em reunião Mauro Junqueira, secretário-executivo do conselho que reúne gestores municipais (Conasems).