Entrevista

Mandetta diz em livro que Bolsonaro ignorou conscientemente o impacto da Covid-19

Ex-ministro Luiz Henrique Mandetta diz em livro que preisdente Jair Bolsonaro sabia do impacto da covid-19. Foto: Foto: Isac Nóbrega/PR

Embora tenha se recusado a analisar os números, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi alertado de projeções de mortes pela Covid-19 e da gravidade da doença. A afirmação é do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que lança nesta sexta-feira (25) livro em que relata bastidores da crise que levou à sua saída do cargo, em abril.

Entre eles, está uma reunião na qual ele afirma ter apresentado projeções de equipes da pasta que indicavam o risco de o país chegar a até 180 mil mortes pela Covid-19 caso não fossem adotadas medidas de prevenção e isolamento. Bolsonaro, porém, ignorou os alertas.

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“Ele tinha pessoas no entorno dele que mostravam outro cenário. E, como tinha uma assessoria paralela que fala o que se queria escutar, ele embarcou. Ele fez uma decisão não irracional, pensada. Ele não pode dizer ‘eu não sabia que seria assim””, afirma o ex-ministro no livro.

Em entrevista à reportagem, Mandetta comenta alguns desses bastidores.

No livro, o sr. relata uma série de atritos com Bolsonaro e o processo que o levou à saída do cargo. O que o levou a querer registrar isso em um livro e que mensagem pretende passar com ele?

Quando eu estava no ministério, fui procurar o que tinha escrito sobre outras crises sanitárias. É um vazio total. Tem muitos artigos, mas sempre focados na doença, e nada sobre o ambiente [das decisões]. O livro vem para mostrar que você pode ter um técnico, mas a política no entorno tem papel preponderante. Fiz também para ficar um registro desse período. Podemos nos distanciar o tempo que for, mas sempre o ano de 2020 vai ser antes e após o coronavírus.

O sr. diz no livro que Bolsonaro nunca aceitou ver os números da saúde e discutir a realidade que o governo iria enfrentar. E essa realidade envolvia projeções que apontavam até 180 mil óbitos. Como foi esse processo?

O presidente tem uma característica, não só em relação à saúde, mas de forma geral: ele decide com as informações que ele valida. Ele tinha um entorno próximo dele que deu para ele outra visão da epidemia. Lembro das falas do Osmar Terra [deputado federal que é médico e próximo do presidente], da reunião que fez com a médica de São Paulo [Nise Yamaguchi, defensora da cloroquina no tratamento de covid-19]. Ele vai afastando quem está fora do seu viés político. Não é uma característica dele se envolver com a parte técnica.

Naquela época o Brasil chegou a quase zero de máscaras. Precisávamos baixar uma norma nacional para proteger o sistema de saúde. Eu tentava explicar isso, mas era sempre muito atropelado por essa certeza de que “preciso ver a economia”, “precisa voltar a andar e passar logo por isso”.

O que acha que levava a isso?

Tinha um mix. Ele dizia que, se o povo ficar desempregado, podia ter convulsão social, saque a supermercados. Era uma coisa nesse gênero. E havia uma visão do próprio Ministério da Economia sobre arrecadação. Tinha uma sensação de que ele [Bolsonaro] tentava jogar politicamente a saúde nas costas de governadores e prefeitos, como se aquele tema não pertencesse mais ao governo federal.

Mas não vamos falar nada? “Fala que tem a cloroquina.” Isso é muito difícil para qualquer pessoa que venha da saúde, porque não tinha evidência científica, tanto que o meu sucessor [Nelson Teich] também teve a mesma dificuldade. Só mesmo um militar para receber uma ordem e falar: “Então está bom, vou ampliar”.

No livro, o sr. cita uma reunião em que projeções foram apresentadas no Alvorada.

Foi a única reunião em que eu pude falar: “Olha, os cenários são esses, o estoque está assim, não temos condições de abrir a economia agora”. Coloquei num papel e entreguei para ele por escrito as recomendações. Porque ainda nesse cenário tinha gente que falava: “Vão ser 2.000 mortos”. Ou: “Ah, é uma coisa que com cinco semanas, seis semanas, acabou”.

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Quando estudamos a reação dos pacientes a uma doença, uma notícia muito grave, a primeira reação da pessoa é negar, dizer “esse médico errou, não sabe nada, vou procurar uma segunda opinião”. E, nessa segunda opinião, às vezes escuta o que quer escutar. Ou fica com raiva. Depois vem uma fase de reflexão ou positiva, de adesão ao tratamento.

O presidente veio na primeira fase, de negação da doença, e o passo seguinte foi a raiva de quem problematizou para ele o problema, que foi o ministro da Saúde. Eu achava que ele poderia cair na terceira fase, da reflexão, mas ele se manteve nessa fase da negação e de não querer aceitar.

Na reunião, Bolsonaro não chegou a comentar os números que o sr. apresentou?

Apresentei todos, mas ele tinha pessoas no entorno dele que mostravam outro cenário. E, como tinha uma assessoria paralela que falava o que se queria escutar, ele embarcou. Ele fez uma decisão não irracional, pensada. Ele não pode dizer: “Eu não sabia que seria assim”. Sempre deixei muito claro para ele a gravidade dessa doença.

Como avalia as ações hoje de controle da epidemia?

A epidemia tem diferentes etapas. No início, a mortalidade era alta, e a medicina avançou muito. Aquela fase em que eu estava como ministro era de preparo do sistema, para entrar depois mais forte em atenção primária. Mas não vimos isso. Vi o Ministério da Saúde perder a credibilidade na questão dos dados.

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Agora que normalizou o mercado, e há oferta de respirador, tinha de trabalhar notas técnicas, de apoio a estados e municípios, como para a volta às aulas, e vemos um atraso.

Quando ministro, o sr. falava que iríamos ter cinco meses duros, mas já se passaram sete meses. Até quando acha que devemos conviver com esse número alto de casos da Covid?

Eu já falava de uma queda maior em setembro, e isso está começando agora. Devemos diminuir o número de casos, mas ainda ter pequenos surtos. Tem muita gente que ainda está se prevenindo. Mas quanto mais o jovem achar que está tudo normal e for de encontro a essas pessoas, a doença vai ficar endêmica. Vamos conviver, baixando aos poucos, até o aparecimento da vacina.

O sr. diz no livro que “tudo poderia ser diferente se a OMS tivesse nos apresentado o cenário real” e do jeito que foi considerou o cancelamento do Carnaval “desnecessário”. Arrepende-se de não ter cancelado, ou de outra decisão?

Não me arrependo. Tudo o que fiz, fiz com notícias que eu tinha. Apresentaram para o mundo um vírus pesado [de transmissão limitada]. Quando saem as notícias da Itália é que se vê a dramaticidade. Lamentar não ter tomado decisões com as informações que eu tinha, não posso lamentar. Posso lamentar não ter tido essas informações. É como se houvesse duas epidemias, uma no Oriente e outra no restante. Ou é isso, ou a informação veio truncada [da OMS].

O sr. planeja se candidatar a algum cargo?

Vamos passar as eleições de agora e ver. Não é uma coisa líquida e certa. O que acho é que essa polarização, de pessoas falarem que tem de votar no Bolsonaro para não voltar o PT, e o PT falar em votar no PT para não ter o Bolsonaro, isso deixa o eleitor angustiado. Espero que haja maturidade política para um caminho de convergência, um caminho pelo centro, democrático. Se isso acontecer, posso distribuir santinho, ajudar, participar de todas as maneiras. O caminho do Brasil é reconciliar. Não dá mais para apostar em ruptura. Por enquanto vou trabalhar e escutar o que o Brasil tem a dizer.

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