Entrevista

Bolsonarismo pós-derrota emite sinais clássicos da extrema direita global, diz professor

Manifestantes apoiadores de Bolsonaro logo após resultado das eleições. Foto: Eduardo Luiz Klisiewicz

Pesquisador da ascensão da extrema direita, o professor de ciência política Jorge Chaloub, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), afirma que os atos antidemocráticos em frente aos quartéis e nas rodovias desde a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) são sintoma de uma sociedade que naturalizou a violência.

Parte dessa naturalização passaria pelo Judiciário, que, segundo ele, errou em incluir as Forças Armadas no processo de fiscalização das urnas, e pela imprensa, que teria resistido em apresentar Bolsonaro como uma figura da extrema direita, colocando-o apenas como à direita de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“A candidatura do Bolsonaro foi naturalizada e acho que essa é uma chave muito importante de ser compreendida. Bolsonaro é o líder do Executivo mais radical que tivemos na nossa história”, diz.

A postura do bolsonarismo, agora, segue elementos clássicos da extrema direita global, segundo ele: teorias da conspiração, apreço pela lógica e estética militares e incapacidade de aceitar a derrota.

PERGUNTA – As manifestações em frente aos quartéis reúnem vários tipos de discurso, embora o grito de guerra pelas Forças Armadas seja entoado por todos. O que há de coesão nesses atos?

JORGE CHALOUB – Bons pesquisadores da extrema direita brasileira, do fascismo, neofascismo e neointegralismo demonstram que esses grupos já existiam e atuavam, muitos por coordenação na internet. Agora eles se sentiram tranquilos, inclusive incentivados a vir à luz do dia, a ocupar o espaço público para atacar a democracia diretamente.

O eleitorado de Bolsonaro é diverso. Se tivéssemos 58 milhões de figuras afeitas ao fascismo, estaríamos perdidos. Tendo a pensar que nem todas as pessoas que estão acampadas em frente ao Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, estão dispostas a se engajar num golpe, mas é crucial entender que o Brasil virou um país que normalizou o fascismo e a violência como instrumento de produção da verdade.

O que une essa massa, que a gente não sabe exatamente o tamanho, é identificar o PT como o sistema político como um todo, um sistema apodrecido e corrupto, todo viciado. A urna é viciada porque faz parte desse sistema, assim como a pesquisa eleitoral, o jornalismo e o Judiciário.

O que eles defendem é que não há como reformar esse regime porque ele segue uma lógica conspiratória [contra Bolsonaro] e está apodrecido. Esse regime pode ser reformado por quem? Por alguém que o coloque um pouco abaixo e proponha um novo regime. Quais seriam as instituições que, talvez pela vinculação com o Bolsonaro e com 64, poderiam fazer essa operação? As Forças Armadas.

Qual sua avaliação sobre o papel do Judiciário e da imprensa diante dessas manifestações? Como tratar o atual momento sem legitimar o golpismo ou minimizá-lo?

J. C. – Gostaria de voltar um pouco. Num primeiro momento, a candidatura do Bolsonaro foi naturalizada e acho que essa é uma chave muito importante de ser compreendida. Bolsonaro é o líder do Executivo mais radical que tivemos na nossa história. Mesmo as figuras da frente da ditadura militar não defendiam a tortura publicamente. O regime militar torturou, mas você não ouviu Geisel e Médici falando que a tortura era tolerável.

Bolsonaro ultrapassou várias linhas e, num momento inicial, tanto a mídia como o Judiciário o trataram sob a ideia de que era uma retórica de campanha, que talvez não houvesse adesão a essas ideias, que ele atuaria de um modo distinto, que teria alguma dose de autocontenção. Só que Bolsonaro não tem autocontenção, ele avança cada vez mais.

Durante esses anos, a gente teve um cenário de normalização de perspectivas diretamente antidemocráticas: defender tortura, defender agressão de opositores e pensar em opositores como inimigos ilegítimos a serem exterminados. Bolsonaro construiu isso desde o início, não apenas ele, mas várias figuras que operavam como uma direita democrática num campo conservador desde 1988. O que estamos vendo agora, depois da eleição, é consequência desses anos.

Como se poderia não naturalizar uma candidatura oficial?

J. C. – O debate sobre a terminologia de classificar Bolsonaro é importante, por exemplo. Houve muita resistência em classificá-lo como uma figura de extrema direita. A imprensa francesa sempre tratou a Marine Le Pen como tal, não seria uma grande inovação. Os principais veículos do Brasil resistiram a mudar o pensamento de que Bolsonaro seria uma contrapartida de Lula à direita e a abandonar certas falsas simetrias. Na eleição, no pós-pandemia, isso mudou.

O Judiciário também ficou muito titubeante. O ministro Luís Roberto Barroso aceitou que os militares fossem parte de um processo de fiscalização nas urnas. Isso é desvio de finalidade dos militares, não deveria ser tolerado.

Do ponto de vista da mídia, eu penso que é preciso deixar muito evidente o quanto isso é intolerável em qualquer ideia de democracia que a gente tem disponível no debate público do pós-45. Mas eu também acho que a mídia tem que conseguir compreender o tamanho desses atos. A dimensão do povo na rua é muito distinta da dimensão do povo nas urnas. Como esses espaços estão muito próximos, é muito tentador você pensar que essas pessoas da frente do quartel representam 58 milhões de eleitores, mas não. Dificilmente esses grupos elegeriam um deputado do Rio. O risco que representam é gerar um efeito de intimidação, linchamento, violência.

No ato de 15 de novembro em São Paulo, parte do público era formada por casais de idosos, aparentemente de classe média e classe média alta. Pode haver certa nostalgia da ditadura nesse público?

J. C. – Quem entender completamente o que está acontecendo está, no mínimo, muito otimista. Mas a questão da nostalgia aparece muito na bibliografia dos Estados Unidos, sobretudo como traço da extrema direita. É uma ideia de reação à mudança, sobretudo à mudança proposta pela nova esquerda, que colocou em questão a ideia de família tradicional, a desigualdade de gênero, os padrões de sexualidade.

É o desejo de voltar a um passado imaginado. O reacionário se nutre de uma memória cultivada, de uma memória de quando se era mais feliz. Mas tem que ficar claro que eles não querem reconstruir a ditadura militar tal como ele era, mas como eles imaginam que era.

E a atual posição de Bolsonaro, como o sr. interpreta? A militância tenta decodificar seu silêncio e ler possíveis sinais que ele emite.

J. C. – Essa leitura é algo que não passa só por ele, a recorrência a teorias conspiratórias é uma marca da extrema direita global. Olavo de Carvalho teve um papel muito central de construir uma grande narrativa conspiratória e de tornar a retórica da conspiração algo do dia a dia.

A estrutura de uma teoria da conspiração, por definição, não pode ser questionada, digamos, por um debate normal. Se eu falo para você uma grande teoria e você não acredita, facilmente se encaixa como ingênuo ou cúmplice. Como o conspiracionismo lida com o que há de oculto, você sempre pode aumentar o que não é visto. Se o Bolsonaro falasse que “as urnas estão corretas” seria um baque, mas não impediria que alguns dissessem “Bolsonaro lá atrás deu sinais que era para a gente interpretar o contrário do que ele falou”.

Fiz um acompanhamento muito longo de falas do Bolsonaro e é impressionante que, mesmo quando era um deputado lateral, sempre teve um imaginário militarizado do golpe, da insurreição. Hoje ele sabe que é um presidente derrotado e que não tem as condições materiais para isso. Ele quer que haja movimentos espontâneos pela liderança dele. Assim que eu interpreto.

Há paralelo desses atos com outros após eleições?

J. C. – O questionamento das urnas tem muita semelhança com o que aconteceu depois da eleição de Joe Biden. Muitos dos que invadiram o Capitólio também tinham lógica e uma estética militarizada. Acho que o imaginário do Capitólio é presente.

Só que a postura do Exército americano foi uma postura de condenação veemente de manifestações antidemocráticas e de defesa veemente da validade das eleições. Não teve nenhum general falando algo dúbio. Isso nos distingue muito, o que é preocupante, não a curto prazo, mas no horizonte.

Raio-X

Jorge Chaloub, 38, é doutor em ciência política pelo IESP-UERJ, com doutorado-sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. É professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. É pesquisador das direitas brasileiras após 1945.

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