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A ‘xerife do mar’ que salvou o Atol das Rocas

Esse lugar acima aí na foto é meu escritório. Não tenham pena de mim. Eu mereço.

Primeira unidade de conservação marinha do Brasil, quando a Reserva Biológica do Atol das Rocas foi criada, em 1979, o cidadão que era delegado substituto do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – antigo órgão de gestão ambiental), Maurino Sena Silva, não acreditava que fosse possível ocupar uma reserva oceânica. Ele dizia: “Ah, mas não tem barco. Precisamos de 25 pessoas e só temos seis fiscais do IBDF no Rio Grande do Norte”. Esse delegado era meu pai. Mal sabia ele que um dia eu trabalharia no Atol.

Cheguei lá com 25 anos, em 1991, quando a reserva foi implementada (a 267 km da costa do RN). Assumi a chefia em 1995 e nunca mais saí. Nossa primeira base era um acampamento. Vivemos por três anos em barracas, sem contato com o continente. Debaixo de muito sol, muito sal, tomando bicada de trinta reis e viuvinhas (espécies de aves locais) que também não tinham problema em jogar cocô na cabeça da gente.

Cada expedição dura pelo menos 35 dias, sem voltar para a terra. Mas hoje tem internet, dá para falar com a família. Antes não tinha nada. Era um isolamento total. Chegamos a ficar só eu e um colega por 43 dias. Era pesado, porque era desconhecido. A gente comia ao pôr do sol e depois era um breu. Com um monte de rato, barata, escorpião.

Passei frio, fome. Mas para mim o isolamento era tudo. Não ter de assinar ponto. Viver com bicho, conversar com bicho. Lavar louça vendo aquele tanto de tubarão… Quando cheguei lá soube que nunca mais seria uma pessoa comum.

Aos poucos, fui entendendo o atol. Quando a maré baixava, eu escolhia um local e ficava parada, sozinha, por horas. Vendo o caranguejinho, o peixinho, anotando tudo o que tinha ali.

O atol é lindo, mas é muita pressão. Mesmo hoje – que tem internet via satélite, energia solar, três geladeiras, comida, ninguém mais passa por dificuldade – tem pesquisador que chega falando que moraria ali para o resto da vida e não aguenta dez dias. Não é para todo mundo.

Mas no começo, a vida passava e a gente nem sentia. Só que era uma dor muito grande ver os barcos de pesca. O atol foi sempre área de pescador e por cerca de 300 dias por ano eles estavam lá. Às vezes eram oito, dez barcos, pescando com rede, compressor, linha, arpão. E saíam carregados de peixe.

Eu subia no farol para ver os barcos de pesca – e também a beleza do atol – e fica pensando: ou eu me entrego, ou desisto, ou mudo a história. Foi quando decidi me transformar na xerife do mar. E corri atrás de muito barco de pesca. Tirava as redes. Salvava os bichos ainda vivos, até que a gente conseguiu.

Estratégia

Mas não era só no confronto direto. A gente tinha uma estratégia. Eu combinava com um pesquisador: ele pegava um rádio e me chamava no outro, como se fosse o Atol chamando a Marinha. Normalmente os imediatos são cariocas. Então a gente falava com o sotaque deles: Atol das Rocas, Atol das Rocas (fala imitando o chiado característico), aqui é a Marinha do Brasil. Fazia isso umas três vezes, sem atender do outro lado, e a gente já via os barcos se afastando, porque eles interceptavam o sinal de rádio.

No início sofremos muita ameaça. Uma vez, estava a 2,5 milhas do atol tirando uma rede, e o pescador reclamou, disse que estava pescando numa boa. “Numa boa, dentro da reserva?”, perguntei. E ele pegou a arma. A sorte foi que tinha um outro pescador que me conhecia desde que nasci e segurou ele.

Os pescadores sempre falavam que iam atirar. Eu só dizia: “Bicho…” Subia no barco, mostrava que não tinha arma, conversava. Perguntava o que tinha para comer. A gente tem poder de polícia, mas nunca usei arma porque numa área daquela, se desse um tiro… Éramos eu e mais três pessoas isoladas. Cada barco tem oito homens. Matavam a gente e nunca ninguém nem ia descobrir quem foi.

Era melhor ganhar a confiança deles. Tentava mostrar que eu era um ser humano normal, mas minha função ali era não deixar o pescador pescar, porque é proibido. Eu dava uma chance de ir embora, porque sei que pescar ali era uma coisa cultural. Mas dizia: “Se eu pegar vocês de novo no Atol, a mulher de vocês é bonita? Porque eu vou pegar mulher, filho, galinha, tudo o que eu puder pra mim!” Aí eles riam e assim foi. Eu perseguia mesmo. Deu certo.

Hoje não sou mais xerife do mar. Agora sou só a Zélia. Fui xerife na hora que tinha de ser. Pensava: ou vou morrer ou vou mostrar que sou mais que eles, porque tenho a legislação a meu favor. Eu me inflava, virava uma supermulher e ia atrás deles. Ia pesado, brigando. Para verem que eu era mulher, mas não tinha medo. Só que eu tinha. Quando voltava, deixava o pesquisador e ia ao banheiro. E chorava tudo o que tinha de chorar.

Até hoje tem pescador mais velho que olha para mim e fala: “A bicha era braba demais”. Se soubessem como chorei com medo deles. Mas eles gostam de mim, porque sabem que lutei pela vida deles também. Se não fosse o Atol, não tinha mais pescado naquelas áreas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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