Embora o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) tenha anunciado a contratação de 562 milhões de doses de vacinas contra a covid para este ano, volume que representaria “mais vacinas que brasileiros”, 37% desse total ainda consta apenas como intenção de compra ou enfrenta outros impasses, como a falta de aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para que possam ser aplicadas.
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O anúncio foi feito pelo ainda ministro no dia em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) indicou o cardiologista Marcelo Queiroga para substituí-lo no comando do Ministério da Saúde.
Na prática, das 562 milhões de doses, 140 milhões ainda precisam resolver pendências de contrato. Entram nesse grupo 110 milhões de doses de vacinas previstas pela Fiocruz para serem produzidas no Brasil no segundo semestre e 30 milhões do Butantan, as quais constam ainda apenas como intenção de compra pelo ministério.
Representantes dos laboratórios dizem esperar que os contratos sejam fechados, mas admitem que o cenário traz incertezas -sobretudo no caso do Butantan, que já teve impasses com a pasta nos últimos meses.
Há ainda outros 68 milhões de doses de vacinas que precisam passar por aval da Anvisa para serem ofertadas no país.
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Estão nessa situação imunizantes de três laboratórios: União Química, que prevê entregar 10 milhões de doses importadas da vacina russa Sputnik V a partir de abril; Precisa Medicamentos, que prevê 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin; e Janssen, que fechou acordo para fornecer 38 milhões de doses.
Somados esses dois impasses, são ao menos 208 milhões de doses -ou seja, 4 em cada 10 previstas pelo ministério- que, embora tenham sinalização de entrega, ainda têm pendências a serem resolvidas para que a distribuição se efetive.
O cálculo reflete apenas parte dos desafios para o acesso às vacinas. Outros fatores, como possíveis atrasos na obtenção de insumos e incertezas sobre o plano de entrega, podem ainda alterar o cronograma ao longo deste ano.
É o caso de 8 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca previstas para serem importadas da Índia pela Fiocruz. Nos últimos meses, o governo alterou ao menos duas vezes a previsão de entrega dessas doses.
A data, agora, é entre abril e julho -mas membros da Fiocruz admitem que ela ainda precisa ser confirmada.
“Recebemos comunicação [do Serum Institute, que enviaria as doses] de que não estão conseguindo cumprir compromissos externos, e o governo da Índia deu uma segurada nessas importações. Mas também tivemos informação de que enviarão novo cronograma em abril. Esperamos ter uma boa notícia em um futuro próximo”, afirma o vice-presidente de produção e inovação da Fiocruz, Marco Krieger.
Também está pendente o plano de entrega de 33 milhões de doses da Covax Facility, iniciativa da Organização Mundial de Saúde que prevê, em acordo com o Brasil, 42,5 milhões de doses em 2021.
Em meio às incertezas, a possibilidade de ajustes no cronograma tem sido citada pelo Ministério da Saúde. “Tem mais vacina que brasileiro. Mas essas vacinas se mantêm em validade para 2022, e não podemos contar com 100% das entregas, há oscilações”, disse Pazuello na segunda (15).
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Nos últimos dias, o ministério também tem feito vários ajustes e reduções no volume de doses previsto para março.
Laboratórios ouvidos pela Folha de S.Paulo dizem que a oferta tem sido regularizada, mas admitem possibilidade de mudanças nos próximos meses.
Em abril, por exemplo, cronograma da Saúde aponta 30 milhões de doses da Fiocruz -já a fundação prevê 21 milhões. A redução ainda é reflexo do atraso no início da produção e liberação dos lotes, que passam por controles de qualidade.
“Em abril tem uma liberação ainda um pouco menor, mas em maio vamos produzir na mesma escala em que estamos liberando”, afirma Krieger.
A fundação deve receber o restante dos insumos previstos para produção nos próximos dois meses. “É ainda um ponto de atenção, mas estamos mais confortáveis.”
Segundo Krieger, a Fiocruz já deu os primeiros passos para fabricar os insumos no Brasil, o que deve evitar impasses no futuro e assegurar doses 100% nacionais.
A fundação, no entanto, ainda negocia novo contrato com a Saúde para essa etapa. Mesma situação vive o Butantan, que recebeu uma manifestação inicial do governo por mais 30 milhões de doses após as 100 milhões iniciais, mas ainda não teve o contrato fechado na prática.
Questionado, Krieger admite que o contrato para o segundo semestre ainda está pendente, mas diz ver o risco como baixo por já ser uma instituição vinculada à pasta.
Avaliação diferente tem membros do Butantan, segundo os quais a confirmação dependerá dos critérios para o novo acordo nos próximos meses.
Em nota, o instituto diz que já entregou ao ministério 22,6 milhões de doses e que trabalha para cumprir os contratos já firmados até o fim de agosto.
Segundo o laboratório, um novo carregamento de insumos, correspondente a 6 milhões de doses, deve chegar neste mês. Com isso, o Butantan cumpriria uma primeira etapa do seu contrato, de 46 milhões. Já a segunda (54 milhões) “está condicionada ao recebimento de novas remessas [de insumos]”, aponta.
A reportagem procurou o Ministério da Saúde sobre os impasses no cronograma, mas não recebeu resposta. Também questionou os laboratórios Janssen, União Química e Precisa Medicamentos, que ainda precisam de aval da Anvisa.
A Janssen informou que pretende pedir o uso emergencial da vacina no Brasil, mas não deu prazo. O fato de o aval já ter ocorrido em outras agências reconhecidas no mundo, no entanto, indica que não deve haver dificuldades.
A União Química e a Precisa não responderam. Nos últimos meses, os laboratórios já disseram diversas vezes que entregariam documentos à agência -o que não havia ocorrido até a última sexta (19), segundo a Anvisa.
Internamente, membros da Saúde já admitem que a oferta de 8 milhões de doses da Covaxin em março, como era previsto inicialmente, é improvável nesse prazo.
Para a epidemiologista e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações Carla Domingues a incerteza em pontos do cronograma indica que a campanha de vacinação contra a Covid ainda pode passar por dificuldades nos próximos meses.
“É uma campanha que começou com pouca vacina, desestruturada, com cada município caminhando de um jeito. Vai ser difícil ver impacto a curto prazo, e vamos passar ainda muita dificuldade para ver como vai evoluir”, afirma ela, que cita parte das pendências.
“Por mais que tenha assinado o contrato [com algumas empresas], não tem nada concreto. A vacina da Bharat Biotech não entrou na Anvisa, a Sputnik a mesma coisa. O que podemos contar em curto prazo é com a vacina da Fiocruz e Butantan.”
Para Domingues, a previsão repetida por Pazuello de vacinar toda a população maior de 18 anos ainda em 2021 só é factível se houver aceleração da oferta de doses.
Análise da plataforma MonitoraCovid, da Fiocruz, aponta que, se seguir o ritmo atual, o país levaria mais 2,4 anos para aplicar doses em toda a população adulta. O cálculo pode ser revertido caso haja maior disponibilidade de vacinas nos próximos meses, afirma Diego Xavier, um dos coordenadores do projeto.
“Precisamos lembrar que o PNI [Programa Nacional de Imunizações] é o maior programa de vacinação pública do mundo. O que falta ainda são essas doses de vacinas.”
CRONOGRAMA DE DOSES PREVISTAS PARA 2021
Fiocruz (vacina Covishield/AstraZeneca)
Total de 212,4 milhões
Doses produzidas no Brasil com insumos importados
Março – 3,8 milhões (parte entregue)
Abril – 30 milhões
Maio – 25 milhões
Junho – 25 milhões
Julho – 16,6 milhões
Doses com insumo também produzido no Brasil
Agosto – 22 milhões (contrato pendente)
Setembro – 22 milhões (contrato pendente)
Outubro – 22 milhões (contrato pendente)
Novembro – 22 milhões (contrato pendente)
Dezembro – 22 milhões (contrato pendente)
Doses prontas importadas
Janeiro – 2 milhões (entregue)
Fevereiro – 2 milhões (entregue)
Abril – 2 milhões (cronograma a confirmar)
Maio – 2 milhões (cronograma a confirmar)
Junho – 2 milhões (cronograma a confirmar)
Julho – 2 milhões (cronograma a confirmar)
Butantan (vacina Coronavac/Sinovac)
Total de 130 milhões
Doses prontas importadas
Janeiro – 6 milhões
Doses produzidas no Brasil com insumos
Janeiro – 2,7 milhões (entregue)
Fevereiro – 4,25 milhões (entregue)
Março – 23,3 milhões (parte entregue)
Abril – 15,8 milhões
Maio – 6 milhões
Junho – 6 milhões
Julho – 13,5 milhões
Agosto – 13,5 milhões
Setembro – 8,8 milhões
Outubro – 10 milhões (contrato pendente)
Novembro – 10 milhões (contrato pendente)
Dezembro – 10 milhões (contrato pendente)
Covax Facility (OMS)
Total de 42,5 milhões
Doses importadas – Covishield/AstraZeneca
Março – 3,0 milhões
Até maio – 6,1 milhões
Até dezembro – 33,4 milhões (cronograma a confirmar)
Precisa Medicamentos (vacina Covaxin/Bharat Biotech)
Total de 20 milhões
Doses importadas
Março – 8 milhões (sem aval da Anvisa)
Abril – 8 milhões (sem aval da Anvisa)
Maio – 4 milhões (sem aval da Anvisa)
União Química (vacina SputniK V/Instituto Gamaleya)
Total de 10 milhões
Doses importadas
Abril – 400 mil (sem aval da Anvisa)
Maio – 2 milhões (sem aval da Anvisa)
Junho – 7,6 milhões (sem aval da Anvisa)
Pfizer/Biontech (vacina Comirnaty)
Total de 100 milhões
Doses importadas
Abril – 1 milhão
Maio – 2,5 milhões
Junho – 10 milhões
Julho – 10 milhões
Agosto – 30 milhões
Setembro – 46,5 milhões
Janssen
Total de 38 milhões
Doses importadas
Até agosto – 16,9 milhões (sem aval da Anvisa)
de setembro a dezembro – 21,1 milhão (sem aval da Anvisa)
Fonte: Ministério da Saúde, até 15.mar