Se, como dizia Jorge Luiz Borges, a vida é feita de momentos, nela, há momentos únicos. Venho de viver um deles, ao participar da cerimônia de outorga do título de doutor honoris causa ao ex-presidente Lula da Silva, na Universidade de Coimbra, como professora brasileira em exercício em Portugal.
A Universidade dispensa adjetivos e é, per se, instituição basilar da cultura que conformou o Brasil, mais de dois séculos anterior ao próprio descobrimento. Exuberante na forma e nas tradições universitárias, ao homegear-se Lula, mas também o Brasil, ofereceu-se espetáculo grandioso, a começar pelas vestes históricas de alunos, as tradicionais capas negras, que pelo Código Acadêmico “devem ser usadas com orgulho, mas sem arrogância, pois elas simbolizam a igualdade”. No início da cerimônia, os estudantes perfilhados estendem suas capas ao chão, em gesto de reverência e para criar um caminho de honra ao homenageado. Nada que pudesse ser mais simbólico!
Depois, segue-se para a Biblioteca Joanina, uma das mais belas da Europa, toda adornada em ouro. Os guias portugueses sempre observam que todo ele é brasileiro, e, nesse caso, considere-se, foi muito bem empregado. Da Biblioteca, em cortejo como se fosse uma procissão, todos seguem com liturgia até a Sala dos Capelos, sob o dobrar dos sinos centenários e da orquestra a tocar o mesmo dobrado de 800 anos. Os professores seguem o cortejo, dois a dois, com seus capelos, capas e anéis, por ordem de antiguidade, a começar pelas faculdades mais recentes, a Faculdade de Psicologia, com suas vestes cor de laranja, até as azuis, traje da Faculdade de Letras, última a desfilar, por ser a mais antiga, antecedida pelos encarnados – a cor do Direito – e, antes dessa, o amarelo ouro da Medicina.
À entrada da Sala dos Capelos, os professores também formam um corredor de honra para recepcionar o doutorando. Antes de Lula, JK, Tancredo e Fernando Henrique passaram pela mesma deferência.
Já dentro da antiga Sala do Trono, hoje Sala dos Capelos, palco das mais relevantes cerimônias acadêmicas, e sob o olhar de todos os reis de Portugal, ali imortalizados em magnas telas à óleo, ecoam as palavras do professor Gomes Canotilho, a misturar sensibilidade, cultura e amor ao Brasil: “com a sua sabedoria regada com azeite da alma e da luta, da poesia para o filósofo, do filósofo para o povo, do povo para o homem do povo: Lula da Silva”. E finalizou, como manda a tradição, a pedir a imposição das insígnias doutorais ao “eminente humanista e homem de Estado.” Depois, seguiu-se a fala do já doutor Lula da Silva, visivelmente emocionado, a dedicar o prêmio ao seu ex vice-presidente que acabara de falecer.
A relação fraterna entre os dois países também foi ressaltada pelo homenageado: “O que nos une é infinitamente mais importante do que o que nos separa. Somos uma comunidade de destino a ser potencializada com entusiasmo, tanto na esfera linguística e cultural, quanto no terreno econômico e comercial”. No intercalar dos discursos a orquestra de metais enchia a sala. Os metais substituem as palmas, que jamais são ouvidas nessas solenidades, pois as regras exigem o silêncio.
Mas a visita em terras lusas não foi só de pompa e de circunstância. No terreno econômico, discutiu-se relevante agenda bilateral, com a possibilidade de o ex-colonizado estender a mão ao ex-colonizador, que vive momento particularmente delicado, imerso em crise econômica sem precedentes. Portugal insiste em não recorrer à ajuda externa, porém, com o cerco a apertar cada vez mais, a ajuda certamente virá, e o apoio do Brasil já é dado como certo. A propósito, com o inconfundível humor inglês, o Financial Times sugeriu, em recente editorial, que Portugal poderia tornar-se uma província do Brasil: “Aqui vai uma maneira ‘out-of-the-box’ para lidar com o problema: anexação pelo Brasil. Portugal seria uma grande província, mas longe de ser dominante: apenas 5% da população e 10% do PIB. A antiga colônia tem muito a oferecer, mesmo para além da diminuição dos ‘spreads’ de crédito e de e contas correntes governamentais muito mais equilibradas. Ademais o Brasil é um dos BRICs, o centro emergente do poder mundial. Isto soa melhor lar do que uma cansada e velha Europa”.
Elizabeth Accioly, Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo Professora da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada Advogada em Portugal.
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