As recentes suspeitas de grampos telefônicos e da interceptação da comunicação de conversas eletrônicas entre ministros do Supremo Tribunal Federal, a mais alta Corte de Justiça do país, sem ordem judicial, durante o julgamento do episódio ?mensalão?, com toda evidência, demonstram, claramente, que estamos diante de um Estado positivamente criminoso. Nesse caso específico, a conclusão que se chega é que alguns representantes do Estado bisbilhotam seus próprios agentes, numa verdadeira afronta à Constituição Federal, que estabelece a inviolabilidade do sigilo de comunicação no rol dos direitos e garantias individuais, autorizando-a, somente, nos casos de investigação criminal (inquérito policial regulamente instaurado) ou no âmbito do devido processo penal, mesmo assim mediante ordem judicial escrita e fundamentada. Cesare Beccaria um italiano que deu início à fase da humanização das penas, ao combater ferozmente a pena de morte, em 1764 – já demonstrava que o estado que pune as pessoas pela prática do crime de homicídio, não tinha o direito de matar criminosos, daí a expressão ?estado criminoso?. A Lei Federal 9.296, de 24/7/1996 que regulamentou a interceptação telefônica e o fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática como era de se esperar, previu uma pena de 2 a 4 anos de reclusão aos autores ou partícipes dessa modalidade criminosa. De tudo resulta que estará praticando um crime quem, sem ordem judicial escrita e fundamentada, realiza a interceptação das comunicações telefônicas ou do sistema de informática.
O que se sabe, por isso, é que essa violação por demais grave aos direitos e garantias individuais, infelizmente, tornou-se um precioso meio fácil de auferir resultados políticos e econômicos espúrios, no momento em que atingiu o mais alto grau da magistratura nacional e, por conseqüência, os guardiões número um da Constituição Federal, embora essa conduta também seja censurável quando é realizada contra qualquer pessoa do povo, indistintamente. A gravidade da escuta telefônica e da interceptação das comunicações via internet, sem decisão judicial é tamanha, que essa atividade ilícita também vulnera a intimidade, a imagem e honra das pessoas, outro princípio constitucional que parece despercebido aos olhos de alguns malfeitores da lei e da ordem. É por demais inconcebível que essa prática delituosa permaneça coabitando com o estado democrático de direito. Digo mais: tal bisbilhotagem ilegal irradia um vasto sentimento de descrença em nossas instituições, no momento em que não vêm à baila os verdadeiros autores desse cruciante mal social que avança cada dia, sem tréguas, destemor e sem punição.
A quem recorrer? Eis o grande dilema. Se essa conduta parte de entes ou de entidades públicas contra seus próprios agentes, pode-se afirmar que estamos diante, repito, de um ?estado criminoso?; se proveniente de particulares, é visível a impotência do Estado em conter repreensíveis atrocidades que denigrem a imagem do país e recrudescem ainda mais o sentimento de impunidade que teima em contribuir para o aumento acentuado da criminalidade entre nós..
Num estado democrático de direito, com efeito, há extrema necessidade de obediência à Constituição e às suas leis, aliás, responsabilidade única dos poderes constituídos, que induvidosamente têm o dever de preservá-las com o uso dos mecanismos de justiça obedecidos o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa até porque, inegavelmente, eles só existem porque todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. Se o Estado fracassa na missão constitucional de punir os anônimos bisbilhoteiros que sobrepujam suas próprias instituições, é evidente que está na hora de modificar seu sistema de inteligência e de investigação criminal, uma vez inadmissível que permaneçamos assistindo tanta violência social.
Adeildo Nunes é mestre em Direito pela Universidade Lusíada de Lisboa, juiz de Execução Penal em Pernambuco, membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e Professor Universitário. adeildonunes@uol.com.br