A matéria posta em exame, na ausência de legislação infraconstitucional própria para definir os destinos das relações metajurídicas fundadas na reprodução assistida por fertilização in vitro (FIV) ou inseminação artificial in vivo, que gravitam apenas nos domínios de uma Resolução 1.358/92 do CFM – Conselho Federal de Medicina, sob os aspectos éticos, e das normas administrativas emanadas do Conselho Nacional de Saúde, da CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança e do Conep – Conselho Nacional de Ética em Pesquisa, ainda que atendidos, subsidiariamente, os princípios gerais do planejamento familiar e da proteção do direito à vida humana, no supremo interesse da criança, evidentemente, deve motivar maior empenho dos mais diferentes estamentos sociais, de modo a sensibilizar os representantes do povo no Congresso Nacional. O País precisa, urgentemente, de uma lei que regule a reprodução humana assistida e, muito em breve, a clonagem humana para fins terapêuticos, em se reconhecendo que o Brasil já está no seleto rol da mais alta biotecnociência mundial de ponta, ladeando-se aos grandes representantes do chamado Primeiro Mundo – Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha e Itália, dentre outros – na busca permanente da manipulação e industrialização da vida com auxilio da Engenharia Genética (ou Biociência), que ninguém consegue interromper. Com ética e responsabilidade, extreme de dúvida, estou convicto: as mais expressivas instâncias nacionais saberão exigir do legislador infraconstitucional todos os instrumentos normativos indispensáveis ao apaziguamento dos profundos anseios psicossociais e de um persistente quadro de conflitos familiares, eliminando-se as angústias e as frustrações daqueles que habitam o árido cipoal das ciências humanas, jurídicas, sociais e da saúde, sob os bons ares da Bioética e do novo Biodireito.

Lamentavelmente, mesmo com o advento do novel direito substantivo codificado, passados mais de 85 anos de vida útil do vetusto Código Civil de Clóvis Bevilacqua, persistem as ditas angústias e frustrações, ainda que no seio das castas mais privilegiadas e formadoras de opinião. O Brasil passa a conviver sob a égide de um diploma que foi trabalhado por quase três décadas, no Congresso Nacional, e que não veio para compor os conflitos de interesses inseridos nas relações jurídicas decorrentes da fertilização humana, pelos processos de reprodução assistida, na denominada “saúde reprodutiva”, que se aperfeiçoa dia-a-dia. São temas polêmicos e múltiplos problemas que envolvem pais e filhos, relações parentais homólogas e heterólogas, além das questões complexas dos embriões excedentários, cujo destino ainda é incerto e defesa a incineração com o congelamento compulsório por prazo indefinido, sem que possam servir à pesquisa científica para salvar vidas. Assim, inegavelmente, as clínicas especializadas em fertilização humana, médicos (ginecologistas, andrologistas e esterileutas), psicólogos, biólogos e todos os demais profissionais responsáveis pela área de “saúde reprodutiva”, continuam a sofrer as dificuldades impostas pelo descompasso entre as leis e o progresso da ciência, sendo sempre observados atentamente pelos casais interessados em ter filhos. Saudáveis e belos, é claro, depois de submetidos ao DPI – Diagnóstico Pré-Implantacional, numa eugenia disfarçada, chegando até a escolha do sexo e que são gerados por aqueles que tudo fazem por um bebê, mesmo que de proveta, e produzidos em fantásticos laboratórios. Casais, aliás, que, também, nas hipóteses de insucesso – induzidos pela próspera “indústria das indenizações” – se mostram interessados em postular as ações indenizatórias para reparação de danos morais e materiais por erro médico (iatrogenia). Vive-se um momento difícil para a Medicina Materno-Fetal e dedicada às mais modernas técnicas de reprodução humana assistida, pois não há sequer uma luz no fim do túnel, quando se enfoca o PLS n.º 90/99, de autoria do senador Lucio Alcântara (PSDB-CE), cuja emenda substitutiva de autoria do senador Roberto Requião (PMDB-PR), que se acha engavetada no gabinete do senador Tião Viana (PT-AC), deixa tudo a desejar, para grande insatisfação dos operadores do Biodireito e para a Medicina Legal, num retrocesso desmedido e inaceitável, que visa entravar o progresso científico.

Com a próxima vigência do novo Código Civil, a partir de 10 de janeiro de 2003, verifica-se que nada mudou quanto à possibilidade jurídica das relações emanadas dos procedimentos de fertilização humana artificial ou assistida e, também, sobre a recentíssima hipótese de clonagem humana para fins terapêuticos ou reprodutivos. Apesar de uma imensa boa vontade e de um esforço olímpico, não consigo esconder meu profundo lamento com o que leio no diploma substantivo, no Livro do Direito de Família, além daquilo que está gizado nos outros livros. Porém, o critério de avaliação pessoal não é tema para debater neste espaço, cuja finalidade é outra: sensibilizar as classes formadoras de opinião para que clamem ao Congresso Nacional pela necessidade urgente de uma lei para a reprodução humana assistida. Nada justifica a omissão do legislador brasileiro, quando já passados mais de dezesseis anos do nascimento do primeiro bebê de proveta (a paranaense Ana Paula Caldeira), pois é melhor enfrentar o polêmico tema sem temor e com clareza do que se retrair numa penumbra cinzenta, que não conhece nem a vitória nem a derrota, como dizia o grande estadista Theodore Roosevelt.

Sobre as próximas normas de Direito de Família, a advogada Sonia Barroso Brandão Soares, professora da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, in “O novo Código Civil comentado”, v.2, Freitas Bastos Editora, 2002, discorre com extrema clareza:

“Mudou a família. Mudou o Estado. Mudaram as concepções que os regiam. Avançou-se de um liberalismo patrimonialista, individualista, hierárquico, transpessoal e patriarcal, fundado na desigualdade, para o bem-estar social, onde o princípio regente é a dignidade da pessoa humana. Diferentemente do individualismo exacerbado do século XVII – início da sociedade capitalista – o que se procura agora é a realização de todos, mantido o respeito à dignidade de cada um. Há publicização do direito privado e há privatização do que era público.”

Assim, penso que como disserta a jurista: “O ordenamento jurídico brasileiro não poderia ficar infenso a tais modificações sociais”. Numa resenha histórica da legislação pátria, tem-se que com muito esforço da sociedade organizada, depois da Constituição de 1937 (do Estado Novo de Vargas), conquistou-se direitos importantes. Lembro que os filhos naturais foram equiparados aos legítimos (havidos do casamento) em todos os direitos, o sistema codificado sofreu inúmeras modificações: o Decreto-lei 4.737/42 e a Lei 883/49, que modificaram a sistemática da filiação vigente no original Código Civil de 1916, permitindo-se o reconhecimento dos filhos adulterinos por escritura pública ou por testamento, uma vez dissolvida a sociedade conjugal, e concedendo aos mesmos direitos sucessórios. Também o filho adotado passou a ter direito à metade dos bens amealhados em sucessão pelo filho biológico superveniente, por meio da Lei 3.133/57. Tais leis modificaram a redação original do artigo 1.605. Seguiu-se às mesmas a Lei 4.121/62 (Estatuto da Mulher Casada) já na década de 60 – após, portanto, a eclosão dos movimentos feministas da década de 50 – que reconheceu às mulheres direitos de livre determinação de suas rendas, ainda que parcialmente. Mais adiante a Emenda Constitucional n.º 9 de 1977 e a Lei 4.515/77 romperam com os dogmas da indissolubilidade do vínculo jurídico do casamento com a aprovação do divórcio. Destaque-se ainda o Código de Menores de 1979 e a Lei 7.250/84. Esta última ampliou a possibilidade de reconhecimento do filho adulterino por sentença transitada em julgado para o cônjuge separado de fato por mais de 5 anos contínuos.

Ademais, a citada professora Brandão Soares enfatiza que: “O climax de tais modificações se deu com a mudança da tábua de valores do próprio ordenamento com a Constituição Federal de 1988. Esta promoveu verdadeira revogação tácita do ordenamento anteriormente vigente e propiciou a vinda de toda uma nova estrutura infraconstitucional. Após a promulgação da CF/88, Estado e pessoa se entrelaçam na moderna sociedade de consumo fazendo surgir a idéia do consumidor-cidadão. Reafirma-se a idéia de funcionalização da família, onde o que não importa são os vínculos biológicos ou judiciais, mas sim a realização psicológica e afetiva de cada um de seus membros – repersonalização. Seguiu-se, então, a Lei 7.841/89 (que revogou expressamente o artigo 358 do Código Civil aplicando no ordenamento definitivamente o princípio da plena igualdade entre os filhos), a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – reafirmando o princípio do melhor interesse da criança), a Lei 8.560/92 (que ampliou o acesso à investigação de paternidade e o reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento), a Lei 8.971/94 (que concedeu por lei, pela primeira vez, direitos aos companheiros a alimentos e à sucessão, embora tais direitos já fossem assegurados constitucionalmente e já tivesse sido objeto, inclusive, das Súmulas 380 e 382 do Supremo Tribunal Federal, antes da CF/88), a Lei 9.263/96 (que disciplina o direito ao planejamento familiar, reforçando a idéia da paternidade responsável) e a Lei 9.278/96 (que regulamentou o § 3.º do artigo 226 da CF/88 definindo os critérios de reconhecimento da união estável).”

Mais adiante, no seu lúcido pensamento, prossegue a jurista carioca: “Avanços científicos e tecnológicos dão ao homem a capacidade até mesmo de reproduzir espécimes fora do contexto da conjunção carnal – a clonagem da ovelha Dolly e do bezerro Ushi e os modernos métodos de reprodução assistida que permitem, inclusive, a geração de filhos em útero alheio, são bons exemplos. A contrário senso, nossos códigos continuam aferrados a valores ultrapassados que não refletem nem de longe a realidade que nos cerca. Alguns dos valores excluídos da codificação – e não apreciados por legislação constitucional ou extravagante – são a posse e o estado de filho, a vinculação socioafetiva que deve reger a filiação e dar fundamentos ao intérprete que pesquisa a manutenção ou não da presunção pater is esta, além da desvinculação necessária entre o indivíduo e os bens. Bom exemplo disso é a manutenção no novo Código Civil da culpa na dissolução da sociedade conjugal, cuja sanção permanece sendo a perda dos bens em razão dela adquiridos e do direito a alimentos – embora esta com algumas ressalvas.”

Lembre-se aqui a palavra sempre sábia do imortal jurista baiano Orlando Gomes, in “Direito de Família”, 1.ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1968, nota do autor, p XI, que soa:”(…) No entanto, diante desses fatos novos, um novo direito está procurando discipliná-los, com a preocupação de criar as condições elementares à estabilidade dos grupos familiares, constituídos ou não segundo o modelo oficial, para surpresa e alarde dos indiferentes à marcha da História. Um Código Civil atualizado pode ignorá-lo. É de admitir-se até que os regule diferentemente. O que não se tolera é o seu desconhecimento, e, muito menos, a confirmação da atual postura aristocrática que levaria o reformador a menosprezar esses novos aspectos das relações familiares sob o falso fundamento de que constituem matéria estranha à sua órbita.” Trata-se, induvidosamente, de um forte alento ao atual legislador, que com o brilho de uma festejada mudança política nacional estará assumindo uma próxima Legislatura plena de esperanças.

Encerro este comentário, enfatizando a posição da citada professora Sonia Barroso Brandão Soares, que, advogada militante como eu, sente as mesmas dificuldades para construir um Direito de Família moderno e que satisfaça as efetivas necessidades das pessoas, diante do progresso biotecnocientífico, observadas as normas éticas e morais, com a quebra de antigos tabus e dogmas laicais, mas com responsabilidade transgeracional. O legislador infraconstitucional, portanto, deve se libertar dos fantasmas e dos medos para corporificar a necessária vontade política e, conseqüentemente, poder avançar , com briosa coragem , na feitura dos comandos legais, há muito, almejados pela sociedade organizada, sob pena de se manter um inusitado descompasso entre a lei e a vida humana, que já é manipulada pela Biociência, sob a proteção do Texto Supremo e o rigor do novo Biodireito, que para os adversários do neologismo – cumpre frisar aqui – é o Direito voltado à Bioética e à Medicina Legal, no grande objetivo de garantir a suprema dignidade da vida humana, na sua magnitude pessoal, interpessoal, familiar, social e difusa.

Aliás, como diz a autora aludida, nas suas conclusões sobre o novo Código Civil, que acaba de entrar em vigor:

“(…) Cumprida nossa missão, verificamos que, de fato, o novo Código Civil aplicou em grande parte de seus artigos os princípios da igualdade material entre homens e mulheres e o do melhor interesse da criança. Porém, quanto aos princípios da pluralidade das concepções de família e da não-discriminação dos filhos em razão de sua origem, cremos que o novel legislador foi bastante econômico na sua utilização.

Foram mantidas a presunção legal de paternidade do filho advindo do casamento e a vedação à investigação de maternidade do filho adulterino a matre – dois belos exemplos de discriminação e tratamento diferenciado. Também foi mantida a vedação a que se promova a investigação de paternidade sem que antes tenha sido promovida pelo pai jurídico a ação negatória de paternidade. Esta, por sua vez, ao ser declarada imprescritível, fere o melhor interesse do filho que, certamente, se sentirá inseguro quanto à sua paternidade por toda a vida.

Também não foram tratadas as entidades familiares monoparentais, embora já com previsão constitucional, e da união civil homossexual, embora já se tenha entendimento jurisprudencial e previdenciário em nível nacional a respeito. Por outro lado, manteve-se no novo Código Civil a estrutura clássica da família advinda do casamento como preferencial. Fato que fica evidente pela separação da união estável em título diferente, embora muitos dos dispositivos relativos à mesma sejam comuns ao casamento. Logo, pode-se verificar que a estrutura da nova codificação repete a estrura de exclusão do Código Civil de 1916.

Em relação ao princípio do melhor interesse da criança, deixou-se de cuidar da guarda compartilhada e da fertilização in vitro com doação bilateral heteróloga. Assim como também não se pronunciou o novel legislador quanto a dois reclamos da sociedade moderna: o conceito de pessoa, se o mesmo muda com a possibilidade da clonagem, e o destino dos embriões congelados, se deveriam ser os mesmos descartados após certo tempo ou doados a algum casal sem filhos que os implantaria e faria uma espécie da adoção.”

Como visionário de um novo tempo de reencantamento da Humanidade, sem ser propriamente um utópico sonhador, creio que já está menos distante a ligação entre o ideal e o impossível, porque o Homem está mais próximo da viva realidade, em busca da paz e do bem-estar geral. Meu firme vaticínio é em favor da grandeza, afastando-se a pequenez de relações conflituosas.

Waterloo Marchesini Júnior é advogado e jornalista, autor do livro Clonagem humana e reprodução assistida.E-mail: wmjadvocacia@aol.com

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