Biodireito: reflexões sobre o direito de nascer e de morrer

A vida – a latere daqueles priscos conceitos filosóficos, religiosos e metajurídicos – é a continuidade de todas as funções de um organismo vivo (vegetal, animal e humano) ou, no mínimo, o período compreendido entre a concepção (ou a fecundação) e o evento morte, de conformidade com o pensamento de respeitável corrente científica das áreas da Saúde. E, ainda, louvando-me no Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, com aquela costumeira clareza solar, tem-se pelas letras do festejado filólogo pátrio, Professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a seguinte definição de vida (originária do latim vita):

“Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em continua atividade, manifestada em funções orgânicas, tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução e outras; existência; o estado ou condição dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte, o espaço de tempo que decorre desde o nascimento até a morte”.

Para o constitucionalista professor José Afonso da Silva, na sua respeitada obra jurídica, onde comenta o Texto Magno (Art.5.º), que dispõe sobre o direito à vida como um bem supremo e indisponível, tem-se que “… não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder a própria identidade”. “É mais um processo (processo vital) que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que mude de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte”.

E, concluindo seu lúcido raciocínio, comenta o tratadista: “Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida”.

A grande indagação metajurídica, ética, moral, filosófica e biotecnocientífica, no entanto, neste vigoroso e controverso início de Terceiro Milênio, sobre o conceito de vida e, conseqüentemente, de morte, quando se trate da pessoa humana, ainda está na razão direta do inicio da vida, ou seja, do momento em que o processo de reprodução sexuada natural ou assistida – e, futuramente, assexuada, resultante em clones – pela concepção e formação embrionária-fetal, deve ser reconhecido como vida humana, como individuo inerente ao denominado sujeito de Direito, protegido pela norma jurídica e consagrado pelos princípios bioéticos.

A concepção pela junção do espermatozóide e do óvulo já deve ser admitida como vida humana? Ou é apenas o início de um longo processo orgânico sobre o qual se embasam os dogmas religiosos, que invocam o pensamento de um consagrado teólogo -Santo Agostinho – editado nos idos do Século V, para assegurar que é vida e, consequentemente, impõe-se a sanção penal contra o aborto, o infanticidio e a eutanásia, sem piedades e exceções.

Porém, o tal dogma cristão fixado na palavra do grande moralista canonizado pelo Vaticano, ultimamente, vem sofrendo as mais severas criticas de centenas de cientistas menos ortodoxos ou agnósticos, que enfatizam a posição de Santo Agostinho sobre o espiritualismo humano, sobre a alma. Ele teria afirmado que o feto só adquire o poder da alma (que é a vida sobrenatural qualificativa da imagem e semelhança da criatura ao Criador, do homem a Deus), após o 40.º dia da concepção, se do sexo masculino, e após o 80.º dia, sendo feminino. Essa concepção laical, já desvendada pela atual comunidade científica, em sendo confirmada, inegavelmente, põe a termo toda uma temerária restrição ao conceito de que a vida começa no exato momento da concepção para, quando menos, autorizar o aborto e convalidar a teoria que defende as experiências com células embrionárias (as células-tronco germinais) até catorze dias da concepção, ou seja, antes de iniciada a formação da rede neural do embrião e o inicio de sua transformação em feto, que pressupõe a vida humana hígida, apesar das málformações genéticas graves e irreversíveis (anencefalia,v.g.) e que devem ser diagnosticadas para admitir a prática do aborto terapêutico ou eugênico.

Sabe-se, ademais, que uma célula germinativa é tão somente uma célula-tronco e nada mais do que isso. Aliás, desde a célula, também chamada célula-ovo, ou o blastócito, se originam a placenta, os diferentes anexos fetais que, no término da gestação, culminam totalmente desprezados, ainda que representem partes da vida humana, iniciando-se agora as pesquisas sobre a possibilidade de utilidade para fins terapêuticos. Seria um radicalismo preconceituoso e, até mesmo odioso, lançado contra a própria vida humana, que necessita de saúde, de bem-estar, de longevidade, atendendo-se o sagrado principio da beneficência, do bem maior contra o mal, ainda que menor, sempre que cause o risco de dano de difícil ou impossível reparação.

Penso que não se pode dizer com certeza jurídica e segurança científica incontroversa, que o embrião humano é vida a partir de duas, de quatro, de seis, de oito ou de uma centena de células, sem que se enfrente um labirinto de divergências acadêmicas e também doutrinárias. Prefiro eu não cair no abismo dessa discussão, para repisar na grandeza de um ideal maior, que é o de aprovar sempre a pesquisa para o progresso das ciências, pelo bem da Humanidade, pela saúde das populações doentes e carentes, em notória hipossuficiência, em geral vitimadas por políticas públicas enganosas e, até mesmo, hipócritas e mentirosas.

Só assim não estaremos estáticos, amorfos e lamentavelmente elitistas, contaminados pela vontade dominante no meio das minorias privilegiadas, que tudo querem e nada dão em troca. Salvar vidas é, no mundo contemporâneo, que sofre dos mais variados males materiais e espirituais, a grande meta a ser cumprida neste inicio e durante todo o Século XXI , aproveitando-se toda experiência deixada pelos 2000 anos da era cristã e por 100 anos de êxito da Medicina ocidental moderna e das Ciências da Saúde. Daí deflui a convicção de que os critérios metajurídicos acerca do início da vida humana devem ser repensados, vaticinando-se que a clonagem humana e a reprodução assistida conduzirão aos novos conceitos legislativos para que o Direito e a Justiça não fiquem em descompasso com as descobertas biotecnocientíficas, que manipulam a vida e, preferencialmente, sem ferir a dignidade humana.

E, sem medo de errar, após muitas e profundas reflexões, ouso afirmar também que, perseguindo a mesma trilha do direito de nascer, a partir do início da vida, o término da vida impõe novos critérios metajurídicos, definindo-se o direito de morrer pela prática da eutanásia em todos os seus desdobramentos, a exemplo dos precedentes judiciários e da legislação vigente em diversos países do Primeiro Mundo. Os abusos praticados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pela precariedade da rede hospitalar pública, além de toda uma gravíssima problemática socioeconômica que atinge as populações pobres e excluídas, com a vênia dos que pensam diferentemente, levam-me ao entendimento de que a morte induzida é a melhor solução em casos extremos constatados em milhares de situações patológicas irreversíveis e incuráveis. Como o aborto, que é livremente praticado nos porões deste País continental, a eutanásia já tem sido comprovada Brasil afora e diante da silência do Estado. Assim, deve ser legalizada o mais breve possível, diante de uma realidade que aí está aos olhos de todos os brasileiros.

O evento morte como um fato natural, na razão direta dos avanços da próspera Medicina, passou a ter mais um significado de grande relevância e que diz respeito aos transplantes de órgãos e tecidos para salvar a vida humana. Assim, no Brasil e em mais de uma dezena de países, trava-se hoje uma polêmica sobre os critérios de diagnóstico da morte encefálica, conhecida como morte cerebral, geradora da oportunidade de extração de órgãos e tecidos para doação e transplantes. O tema é da mais alta indagação jurídica e merece minudente análise, principalmente no território brasileiro, em se considerando as péssimas condições de funcionamento da rede hospitalar pública, que armazena a maior quantidade de órgãos e tecidos para transplantes e não dispõe de meios confiáveis e suficien temente eficazes para avaliar a morte cerebral de doadores potenciais.

Longe de pretender que meus vaticínios terminem vitoriosos no Parlamento, mas sem esconder a firme vontade de que se prestem ao mais amplo debate, nos grandes foros da cidadania, mobilizando quantos estamentos e instâncias possíveis, reafirmo que o direito de nascer, de viver e de morrer motiva algumas conclusões, que passo a pontuar no sentido de que se prestem a atrair os representantes do povo, no Congresso Nacional, objetivando-se uma nova normatização sobre o aborto, a eutanásia e a morte cerebral para efeito de doação e de transplantes de órgãos e tecidos humanos, atendidos os postulados do novo Biodireito.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 – aliás de altíssimo nível no concerto das Nações – o povo brasileiro precisa avançar na conquista de novos direitos infraconstitucionais, de modo a se equiparar aos cidadãos do Primeiro Mundo, com os quais já convivemos em igualdade e até em superioridade,por mais paradoxal que possa parecer. Esses novos direitos devem ser conquistados pelo firme empenho da manifestação de vontade popular para que sejam duradouros e atendam os legítimos anseios federalista e democrático, voltando-se para o relacionamento transnacional e cumprindo uma obrigação reconhecidamente transgeracional.

Em seguida, para que sirvam ao amplo debate científico e cultural, fixo algumas conclusões que considero válidas para atender os anseios das pessoas humanas no direito de nascer, de viver e de morrer :

1) Considerando as intermináveis divergências acerca do início da vida, a partir da concepção das células germinais, admita-se que o embrião só pode ser reconhecido como um ser humano vivo após o décimo quarto dia do processo de reprodução, que é judiciosa e cientificamente comprovado como o tempo útil para início da formação da rede neural e, portanto, o momento em que passa a se desenvolver a sensibilidade embrionária do feto iminente. Enfatize-se que a conclusão é das mais brandas, diante das correntes científicas que propõem o início da vida a partir do critério cardíaco (até o trigésimo dia da concepção),ou do encefálico (até oito semanas da conceção) e do neocortical (até doze semanas da concepção), todos de irreprochável liberalidade.

2) A manipulação genética e o descarte das células-tronco germinais (ou sexuais) supranumerárias e crioconservadas, desde que colhidos os organismos ativos, até o décimo quarto dia da concepção, pode ser deferida para a utilização em pesquisas de laboratório – especialmente as relacionadas com a clonagem terapêutica – sem que o tal procedimento constitua ilícito civil e/ou penal contra a dignidade da pessoa humana, aplicando-se igual interpretação aos embriões congelados e não utilizados nos procedimentos de reprodução assistida in vitro, e que devem ser incinerados por vontade dos casais geradores ou, no prazo fixado em lei, por iniciativa dos responsáveis pelo armazenamento.

3) Para a realização de pesquisas, a manipulação e o descarte de organismos geneticamente modificados, atendida a norma constitucional e a legislação aplicável, a exemplo do que já ocorre com a placenta e anexos fetais, bem como com o cordão umbilical de nascituros, natimortos e recém-nascidos, dever-se-á considerar como fator indispensável, no Direito Positivo, a descriminalização do aborto terapêutico e eugênico, reconhecendo-se, também, que assim como a liberdade sexual, a gravidez é um direito da mulher e por manifestação de vontade dela, poderá ser interrompida a qualquer tempo, na hipótese de estupro, incesto ou outra violência ilícita, e no prazo fixado por lei, sempre que a mulher expressar consentimento formal perante autoridade judicial.

4) A inegável dificuldade de definir o inicio da vida humana, de fixar o exato momento em que, no processo de reprodução, se reconhece uma pessoa, cuja dignidade ainda se deve consagrar, conforme a pregação do imortal filósofo Kant, não deve ser obstáculo intransponível para vencer o permanente descompasso entre os avanços biotecnocientíficos e o novo Biodireito. Com tantos dogmas e tabus sabe-se que não faltam filósofos, médicos, juristas e até mesmo bioeticistas que definem a vida como um “conjunto de fenômenos que se opõem à morte”. Resta, porém, um grande vazio, uma insatisfação amarga, embora se saiba, com evidente facilidade, distinguir o ser vivo do ser inanimado, além de ser notória a dependência dos seres humanos ao evento morte – eis que os nutrientes essenciais à vida saudável são os alimentos oriundos dos seres mortos – numa constante luta pela vida, que não deve ser emocional e sim mais racional, dando-se a cada um que é seu para o efetivo bem-estar geral.

5) Ressalvados os perigos da prática indiscriminada da eutanásia em todos os seus contornos, diante de sua possível legalização, ainda que possam advir problemas nefastos para a sociedade, sob os aspectos médico-legais e judiciais, dever-se-á enfrentar com realismo o direito de morrer – afastadas quaisquer discriminações preconceituosas – a partir de um Direito Natural, que evoluiu e já se integrou ao Direito Positivo, sem que se afronte a dignidade da pessoa humana. Porém, observe-se que a descriminalização da eutanásia deve ter limites rigorosos, sob pena de se concluir com o pensamento do médico Dr.Frank Hinman, que afirmou: “A eutanásia deve ser aplicada não só aos incuráveis, mas também deverá estender-se a algumas categorias de indivíduos, tais como a seres inadaptados à luta pela vida, isto é, aos idiotas, loucos cretinos psicopatas, perigosos ou não, criminosos, delinqüentes, monstros, anormais de todas as categorias, velhos decrépitos, em resumo, a todos aqueles que não são de alguma utilidade no mundo, e que reclamem cuidados sem permitirem qualquer esperança de melhoria”. (in Journal of Nervous and Mental Diseases, do ano 1944). A partir da profunda reeducação ética, moral e cultural, a sociedade – ainda que severos os problemas emocionais a serem demovidos nos países latinos e cristãos – saberá admitir a eutanásia como a morte digna, através da qual, inclusive, poder-se-á salvar vidas com os transplantes de órgãos e tecidos.

6) Considerando a comprovada precariedade dos critérios de avaliação para diagnosticar a morte encefálica ou cerebral, especialmente na rede hospitalar pública brasileira, para fins de doação de órgãos e tecidos humanos e respectivos transplantes, atendido o princípio bioético da dignidade da pessoa humana, dever-se-á reformar a legislação aplicável, após ouvidas as categorias profissionais e científicas responsáveis, no interesse da vida, da segurança e do bem-estar de todos os concidadãos.

Encerro este discurso ciente da complexidade do tema e sem a menor esperança de conciliá-lo. Porém, uma enorme recompensa é-me concedida pela certeza do dever cumprido.

Grave-se aqui, para profunda reflexão, um pensamento que considero valioso:

“É somente pela memória, que somos um mesmo indivíduo para as pessoas e para nós mesmos. Não me resta , talvez, na idade que tenho, uma só molécula no corpo, que eu tenha trazido quando nasci”. (DENIS DIDEROT).

Waterloo Marchesini Junior

é advogado e jornalista em Curitiba, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, autor de Clonagem humana e reprodução assistida.E.mail:
wmjadvocacia@aol.com

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