Entre as pessoas incapazes elencadas no art. 3.º do Código Civil, encontram os menores de 16 anos, os que mesmo sendo maiores, mas com deficiência mental que impeça o seu discernimento e, aqueles que não possam exprimir a sua vontade. Nesses casos quem exerce os atos diretamente será o representante legal do incapaz, para proteger seus direitos. Mas o incapaz tem direito e tem dignidade humana, tanto os seus direitos, bem como a sua dignidade estão salvaguardados pela Constituição Federal. Impedir que o incapaz tenha acesso ao seu direito é atentar contra este, bem como, contra a sua dignidade humana.
O art. 1634, do Código Civil descreve as atribuições cabentes ao exercício do poder familiar, tais como, o dirigir a criação e a educação dos filhos, bem como representá-los até os dezesseis anos e, assisti-los entre 16 e 18 anos, matéria esta quem repetida no artigo 1690. Já o artigo 1689, afirma que os pais têm a administração dos bens dos filhos. Basta isso para ficar bem claro que cabe aos pais administrar os bens dos filhos, até porque ninguém melhor do que os pais, para conhecer as necessidades dos filhos. Se, podem administrar os bens dos filhos, logo podem administrar o dinheiro a estes pertencentes, porque dinheiro também é bem. Aliás, os pais sempre se interessam pelo bem dos filhos, por isso a prioridade em dar a administração dos bens dos filhos aos pais.
Tendo os pais o poder familiar e o direito à administração dos bens dos filhos incapazes e, sabendo-se que aqueles devem ter a plena liberdade na solução das questões de interesse familiar, pela presença do princípio da não intervenção ou princípio obstativo de intervenção (art. 1.513 do CC), não se vê razão para se manter a ortodoxia e obsoleta atuação do Judiciário para reter dinheiro de incapazes, para que fique depositado à disposição da Justiça, sem nenhum amparo legal.
Tornou-se como costume (péssimo costume) no seio do Judiciário nacional impor a retenção de dinheiro de incapaz, sem que para isto exista lei. Não se sabe a origem deste costume, visto que lei não existe e nunca existiu para autorizar tal crueldade com o incapaz, que no seio social é o que mais sofre em razão de sua hipossuficiência. Sabe-se, todavia, que tal medida é de uso corrente, mesmo em desrespeito ao artigo 1.513, do Código Civil e artigo 5.º, II da Constituição Federal.
Se em época passada pensou-se que a retenção de dinheiro pudesse beneficiar o incapaz, este mesmo pensamento, de tudo equivocado, não pode ser mantido no presente. Não existe lei determinando a retenção de dinheiro de incapaz, mas, se existisse seria fatalmente inconstitucional.
Portanto, determinar-se que o dinheiro pertencente ao incapaz seja retido sem lei expressa é ferir a Constituição federal. Tal medida é restritiva de direito e por isso representa exceção. Toda norma restritiva de direito e de exceção deve ser expressa, não podendo sofrer interpretação ampliativa e não é possível interpretação analógica.
A retenção do dinheiro do incapaz viola os direitos humanos e a Constituição Federal que em seu artigo 5.º, LIV, assim dispõe:”LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;” (Art. 5.º, CF. 1.988). Os direitos à privacidade e à administração dos bens familiares são integrantes do grande grupo direitos humanos e contrariá-los é o mesmo que contrariar também as garantias asseguradas pela Constituição Federal, dos direitos humanos.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em momento de inspiração e de alta compreensão do significado dos direitos humanos assim decidiu:
“Direito ampla e inarredavelmente assegurado à mãe, eis que ninguém melhor do que ela, à falta do marido, apta administrar o que pertence aos próprios filhos. (TJ-RJ -Ac. unân. Da 4.ª Câm. Civ. Publ. em 20/8/98. ap. 8.804/97). in Bol. Nossos Tribunais, n.º 42/98. ementa 84.977- COAD. No corpo do acórdão consta a seguinte passagem: “Todavia anota-se que invadir a privacidade das relações familiares, a pretender caçar provas desse dispêndio e dessa necessidade para subsistência e educação do filho da apelante é pretender levar o braço da lei aonde ela não pretendeu, e nem o intérprete e seu aplicador podem chegar”.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pela liberdade de movimentação do dinheiro pertencente ao incapaz no REsp. 727056/RJ; RECURSO ESPECIAL.
2005/0029198-0. Ministra NANCY ANDRIGHI. DJ 04/09/2006 p. 263, RT. 877, p. 299, novembro, 2008.
O Tribunal de Justiça de São Paulo, também tem decidido pela livre administração dos bens de incapazes como consta da Apelação. 720.374-0/5-.
j. 23/03/2006. JTJSP-Lex v. 303, p. 184, de agosto de 2006. Assim também o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, AgIn. 2007.3.009782-8. Ac. 73.247-4.ª C. Desa. Eliana Abufaiad, j. 14-08-2008. RT. v. 877, p. 297, de novembro, 2008. Nada mais justa a decisão que permitiu o levantamento da totalidade dos valores pertencentes a menor incapaz para serem administrados por sua genitora.
O costume que perdura por séculos em manter o dinheiro de incapaz retido em banco, sem nenhuma utilidade para o seu titular do direito sobre os valores, fere tanto o espírito de justiça, bem como, a lógica do razoável.
Visto que a retenção do dinheiro fere tanto a legislação federal (Arts. 1634, V, 1689 e 1.690, do Código Civil), bem como a Constituição, visto que se trata de direito fundamental e que está ao abrigo do artigo 5.º, LIV, da CF/88, também não se pode imaginar a hipótese de somente liberar valores estritamente necessários a cobrir urgência, tendo em vista, que não só de urgência vive o incapaz. A justiça não pode contemplar o absurdo. Absurdo seria o pai fazer um seguro em nome do filho para que este fosse beneficiado e o dinheiro nunca a este chegasse. Nenhum pai, em sã consciência, faria seguro algum para os filhos, se soubesse antecipadamente que após o seu falecimento o filho nada receberia e o que dinheiro seria destinado aos bancos e banqueiros.
O direito evolui conforme evolui a sociedade e, para isto deve ficar atento o intérprete para não ser vencido pelo tempo e se manter atualizado com a realidade social. O direito evolui e, assim, também deve evoluir a mente do intérprete, para não ficar sob a bitola do passado e nem continuar acreditando em mentiras repetidas, para evitar que elas ganhem a aparência de verdade.
Gelson Amaro de Souza é doutor em Direito pela PUC/SP, artigo publicado na Revista Bonijuris de novembro de 2010. (www.bonijuris.com.br).