Há, do outro lado dos planos sociais do governo sempre em débito com as promessas, uma realidade intrigante e contrastante com os propósitos distributivos sempre perseguidos: ao programa “Fome Zero”, voltado a pobres e miseráveis brasileiros pendurados no direito à sobrevivência, opõe-se com vantagem o programa “Barriga Cheia”, dirigido ao funcionalismo da União. Aqui, quanto mais recheado o contracheque mensal sustentado pelo contribuinte, maior é a “ajuda” para comer com direito a inscrição no orçamento.

Os números que vêm do Planalto fazem inveja à maioria dos cidadãos aqui da planície: no ano passado o governo gastou, segundo dizem, a quantia de 650 milhões de reais com o programa “Fome Zero” – a menina dos olhos do presidente Lula, que ensaia a exportação da idéia para todos os cantos do planeta. O gasto deve ter sido maior, se somados os custos todos (inclusive a massiva propaganda) do programa que, de qualquer forma, não decolou a contento. Não vem ao caso, entretanto. Os que receberam um prato de comida, ou dinheiro para comprá-lo no armazém do bairro ou do povoado, penhoradamente agradecem.

Já com a ajuda-alimentação para seu próprio funcionalismo que, além do salário no fim do mês tem emprego garantido, o governo deve gastar este ano mais de um bilhão de reais – o dobro praticamente do que foi despendido com o maior programa social do Planalto no ano passado. Exatos R$ 1.078.000.000,00. E muita atenção para outro importantíssimo detalhe: o “Fome Zero” ajudou, segundo o governo, quase dois milhões de famílias. O “Barriga Cheia” serve a pouco mais da metade: apenas 656.151 funcionários.

Isso ainda não é tudo. Também os beneficiários privilegiados do “Barriga Cheia” repetem, nos variados órgãos dos três poderes da República, a vergonhosa disparidade alhures verificada: enquanto a média da ajuda é de R$ 136,93, há quem receba bem menos (ou mesmo sequer receba) e existem os que chegam a embolsar quantia de fazer inveja a milhões de assalariados, já quase privilegiados porque com carteira assinada.

Na frente estão os funcionários do Poder Judiciário (leia-se Supremo Tribunal Federal), que recebem (sempre em média) R$ 541 mensais de ajuda para comer. São mais de dois salários mínimos (ou R$ 24,59 diários) por mês. Na Justiça Federal, essa média cai um pouco: R$ 434,76. No segundo lugar do “Barriga Cheia” estão os que trabalham para o Poder Legislativo. Aqui, funcionários do Senado e da Câmara praticamente empatam, com a média também mensal de R$ 407,11 reais de auxílio-alimentação. No Poder Executivo, a média geral cai para R$ 93,24 (o pessoal mais perto da Presidência abocanha R$ 150,16 por mês, enquanto o pessoal da Educação se contenta com média de R$ 78,15 – a que mais se aproxima do “Fome Zero”).

Como se vê, além de a própria ajuda ser um disparate neste Brasil de miseráveis, o senso de justiça no programa “Barriga Cheia” é um pouco diferente daquele praticado na planície, onde cada família, independentemente do número de filhos ou de problemas cronicamente contraídos, recebe um valor fixo com o que tem que se virar – como se diz – para sobreviver. Aduza-se ainda que muitos dos primeiros, além do auxílio-alimentação gozam de outras ajudas, como auxílio-moradia, planos especiais de assistência médica e odontológica, para não falar em férias prolongadas e outras mordomias.

No universo do programa “Fome Zero” estão eleitores necessitados; no segundo, cidadãos bem tratados, que freqüentemente reclamam da vida que lhes é concedida pelos contribuintes esfolados (a receita corrente líquida de 1995 foi de R$ 67 bilhões; em 2004 deve passar de R$ 260 bilhões!). É esse mais um retrato do Brasil que aí está.

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