No último dia do ano que recém passou, foi publicada a medida provisória que cria um banco de dados de bons pagadores. Alvo de polêmica, o assunto foi objeto de projeto de lei vetado pelo então presidente e deve ainda voltar a debate no Congresso Nacional.
A discussão em torno do tema reflete a insegurança dos órgãos protetores do consumidor quanto aos reais benefícios e, principalmente, quanto ao bom uso do cadastro. Os receios podem ser divididos em três níveis: (i) se a existência de tal cadastro seria benéfica; (ii) que informações devem ou não devem conter; (iii) como tais informações devem ou não devem ser usadas. Os dois últimos tópicos foram os motivos do veto e as preocupações observadas na medida provisória. É improvável que as mudanças no projeto de lei regridam em relação aos direitos já conquistados para o consumidor.
Focando no primeiro receio, o primeiro passo para a aceitação da novidade, os prováveis efeitos para o microcosmos do consumidor e para o macrocosmos da economia nacional podem ser analisados através da experiência europeia.
Uma situação semelhante fora objeto de julgamento pela corte europeia há poucos anos. O caso Asnef-Equifax1 é referência (leading case) no assunto relacionado com a troca de informações sobre bons ou maus pagadores.
A corte fora questionada se um sistema de troca de informações por instituições financeiras referente ao histórico dos devedores conflitaria com a legislação antitruste da União Europeia.
A legislação antitruste, em qualquer país, visa a proteger a livre-concorrência e, conseqüentemente, os consumidores, que são beneficiados pela queda de preços e pelo aumento de qualidade resultantes da existência de competição no mercado.
Os casos relacionados com a legislação antitruste costumam receber uma análise não puramente jurídica, mas também econômica, cujos conceitos fundamentam toda a aplicação deste ramo do Direito.
Os casos em que concorrentes acordam para reduzir incertezas inerentes ao mercado costumam receber atenção especial, tendo em vista a alta probabilidade de incorrerem em prejuízos para a livre concorrência.
No caso em questão, a corte entendeu que apesar de reduzir as incertezas quanto ao risco dos empréstimos, o cadastro de informações sobre devedores não reduzia os riscos da competitividade.
Ao contrário, o que se observou foi que, por se tratar de um mercado assimétrico, em vez de prejudicar a concorrência, o banco de dados acirrava a competição entre os concorrentes, pois todos poderiam calcular os riscos com base na mesma informação e competir pelos bons pagadores através de uma guerra de preços.
O fato é que antes dos cadastros, as instituições cobravam todas as mesmas taxas de juros. Somente era possível calcular o risco do empréstimo e eventualmente oferecer menores taxas de juros após certa experiência com um cliente, a qual possibilitaria uma análise de um histórico individual entre cliente e instituição financeira.
Por não ser de conhecimento dos concorrentes, mesmo com bons históricos as taxas de juros eram limitadas, pois não havia competição. Quando a informação passou a ser compartilhada, todas as instituições, desejando bons pagadores como clientes, passaram a brigar por eles oferecendo cada vez menores taxas de juros. Isso aumentou a competição no mercado e quem saiu ganhando foi o consumidor.
Além disso, observou-se que o banco de dados é capaz de aumentar a mobilidade dos consumidores, tornando também mais fácil o acesso de novos competidores ao mercado.
A corte destacou, no entanto, que, para que esses benefícios sejam evidenciados, duas características são de grande importância: (i) não deve haver identificação dos credores (logo, não pode ser um mercado concentrado) ou das taxas de juros aplicadas, visto que isto agiria como um facilitador de cartel; e (ii) o acesso e o uso das informações não podem ser discriminatórios, mas deve ter disponibilização igualmente facilitada por todas as instituições financeiras e deve ser limitado ao fim de permitir a avaliação do risco.
Tais necessidades dependem da regulamentação da questão, as quais foram consideradas anteriormente nos ‘receios (ii) e (iii)’. Portanto, a experiência europeia indica que a criação do banco de dados positivo deve ser extremamente benéfica, desde que considerado o livre acesso às mesmas informações por todos os concorrentes e garantida a limitação no uso de tais informações, conforme já previu a Medida Provisória.
Maurício Ribeiro Maciel é advogado. Bacharel em Direito pela UniCuritiba. Pós-graduado em Administração pela College of Technology London. mrm@marinsbertoldi.com.br