Um advogado interpôs em causa própria um habeas corpus preventivo para se livrar da obrigatoriedade do bafômetro ou do exame de sangue (que são meios probatórios do delito previsto no art. 306 do CTB). O habeas corpus foi indeferido liminarmente pela Quinta Turma do STF. Houve Agravo Regimental, também rejeitado (cf. STJ, AgRg no RHC 25.118-MG, Quinta Turma, rel. Min. Og Fernandes, j. 9/6/09).
Fundamento da rejeição: a Quinta Turma não entrou no mérito da constitucionalidade ou não da exigência dos meios probatórios citados. O HC foi rejeitado liminarmente pelo seguinte: “A Turma negou provimento ao recurso diante do fato de não existir qualquer lesão ou ameaça concreta ao direito de ir, vir e ficar do recorrente. Observa o Ministro Relator que não se pode considerar como fundado receio o simples temor de um dia ser chamado a submeter-se ao exame de alcoolemia quando na direção de veículo automotor nas ruas”. Sem uma ameaça concreta ninguém pode ingressar com habeas corpus preventivo. Note-se: o HC preventivo não exige uma lesão ao direito de liberdade, basta uma ameaça, mas precisa ser concreta (real, efetiva). Não pode ser genérica.
Obrigatoriedade do exame de sangue e do bafômetro: ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo. O Ministro Relator, a propósito, sublinhou: “…que a nova lei não obriga o cidadão a produzir prova contra si próprio, tendo em vista que, além do “bafômetro” e do exame de sangue, subsistem os demais meios de prova em direito admitidos para constatação de embriaguez, sendo certo que a recusa em submeter-se aos testes implica apenas sanções administrativas”.
Agregou, ademais, o seguinte: “… a norma do art. 165 do CTB está sendo apreciada na ADIn. 4.103-DF pelo STF”).
Meios probatórios do crime: o artigo 277 do CTB cuida dos meios probatórios que podem conduzir à constatação da embriaguez ao volante. Por força da Lei 11.705/2008, agregou-se ao art. 277 um novo parágrafo (§ 2.º), que diz o seguinte:
“§ 2.º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”.
O art. 277 diz: “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo Contran, permitam certificar seu estado”.
O § 1.º desse mesmo artigo diz: “Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos”.
As três formas clássicas de se provar a embriaguez ao volante são: (a) exame de sangue; (b) bafômetro e (c) exame clínico. No novo § 2.º o legislador ampliou a possibilidade da prova, falando em outras provas em direito admitidas.
A prova da embriaguez não se restringe, mais, às clássicas formas. Outras provas em direito admitidas podem ser produzidas, para que sejam constatados os notórios sinais de embriaguez, a excitação ou o torpor apresentado (s) pelo condutor. Por exemplo: prova testemunhal, filmagens, fotos etc.
Ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo: em matéria de prova da embriaguez há, de qualquer modo, uma premissa básica a ser observada: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (direito de não-autoincriminação, que vem previsto de forma expressa no art. 8.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que possui valor constitucional HC 87.585-TO cf. GOMES, L.F. e MAZZUOLI, Valério, Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, São Paulo: RT, 2008). O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova (contra ele mesmo).
Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro (porque essas, duas provas envolvem o corpo humano do suspeito e porque exigem dele uma postura ativa). Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos Médico-Legais) ou a prova testemunhal.
O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de sangue e bafômetro. Mas não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Disso cuida o § 3.º (novo) que diz:
“§ 3.º (do art. 277). Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.”
A leitura rápida desse dispositivo pode levar o intérprete a equívocos. O texto legal disse mais do que podia dizer. Veremos em seguida. Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por desobediência (quando houver recusa ao exame de sangue, ao bafômetro ou ao exame clínico). Não é isso, propriamente, o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165.
Quando elas incidiriam? Pela letra da lei, quando o condutor recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput do artigo. Na verdade, não é bem assim (a lei disse mais do que devia). Note-se que todo suspeito tem direito de não produzir prova contra si mesmo. Logo, não está obrigado a fazer exame de sangue ou soprar o bafômetro. Nessas duas situações, por se tratar de um direito, não há que se falar em qualquer tipo de sanção (penal ou administrativa).
Ninguém pode ser punido por exercer um direito.
Conclusão: o § 3.º que estamos comentando só tem pertinência em relação ao exame clínico. A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não está sujeita a nenhuma sanção. Quando alguém exercita um direito (direito de não-autoincriminação) não pode sofrer qualquer tipo de sanção. O que está autorizado por uma norma não pode estar proibido por outra (nisso reside a essência da teoria da tipicidade conglobante de Zaffaroni, que aproveitamos na nossa teoria constitucionalista do delito).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).www.blogdolfg.com.br