Maria Francisca Carneiro
A civilística argentina tem se destacado no mundo como uma das mais inovadoras e aprofundadas nas questões jurídicas do nosso tempo. Com efeito, o Direito Civil argentino, liderado por notáveis juristas como o eminente Alberto J. Bueres, vem desenvolvendo metodologias de análise dos fenômenos jurídicos que o fazem de modo ímpar, revelando sua influência internacional.
Neste artigo comentaremos alguns aspectos de diferentes ramos do Direito Civil argentino, que apresentam inovações. Fundamentamo-nos em recentes publicações de Editorial Hammurabi, de Buenos Aires, presidido pelo Sr. Jose Luis Depalma, a quem este escrito é dedicado. As referências bibliográficas vão apostas em notas.
Comecemos nossa análise pela responsabilidade civil do advogado(1). Primeiramente, há que se considerar a distinção entre os deveres tradicionais do advogado (que se classificam em elementos como lealdade, boa-fé, conhecimento do direito, etc) e os novos deveres do advogado (por exemplo, o consentimento informado, a formação da prova e as exceções aos deveres de informação). As órbitas contratual e extracontratual da responsabilidade civil do advogado são voltadas cada vez mais para a prática e, desse modo, vê-se surgir fortalecida a sua relação com as propostas teóricas que se delineiam sobre o assunto. O fator de atribuição de responsabilidade é uma forte tônica da matéria, para que nela se possa transitar com segurança, inclusive no que diz respeito à cobertura de riscos mediante seguro, relativamente à prestação dos serviços advocatícios.
Quanto ao direito de vizinhança, observa-se que o tema assume novas luzes em uma proposta ambientalista(2). Nesse contexto, a responsabilidade civil transita de um minucioso exame individual para uma análise constitucional que, por seu turno, enlaça-se ao direito comparado. São as características sem-fronteiras da ecologia que fazem a renovação do direito de vizinhança, de modo que o direito ambiental pode ser considerado paraconstitucional, tal a sua amplitude. Além disso, a par da transdisciplinaridade que caracteriza o assunto, note-se também o caráter multidisciplinar jurídico, pois o direito de vizinhança sob a ótica ambientalista envolve não apenas o direito civil, mas também a esfera penal, administrativa, constitucional e internacional.
No tocante ao direito de família, merece destaque a responsabilidade dos pais pelos atos ilícitos dos filhos(3). Embora o assunto não seja novo, os fatores de atribuição de causalidade podem ser analisados de forma minudente, em um amplo prisma decorrente do direito comparado. Já não é somente a culpa a única forma de imputar a responsabilidade sobre um ato danoso, mas inúmeros fatores objetivos podem surgir, decorrentes mesmo das transformações nas relações sociais, de modo que os pais respondem sempre que há culpa, mas algumas vezes podem responder objetivamente também quando não há, embora essa responsabilidade não se estenda a outros tipos de guardadores do menor.
Ainda no âmbito do direito de família, a civilística argentina vem tratando dos danos ocasionados no interior das relações de família(4). Os atos danosos ocorridos entre um grupo familiar entre si é uma figura do direito privado que, até há pouco tempo, era praticamente desconhecida bibliograficamente. Este assunto inclui também a referência aos diferentes tipos de convivência sem matrimônio, à imunidade ou piedade familiar e aos pressupostos de responsabilidade civil para determinar o caráter dos danos intrafamiliares.
As tratativas do regime de bens no matrimônio(5) regulam as relações patrimoniais dos cônjuges entre si e desses com terceiros. Embora alguns tópicos sejam imodificáveis por lei, há que se assegurar a tutela dos direitos de terceiros. Desse modo, o enfoque do regime de bens no matrimônio se amplia, posto que não se restringe apenas ao interesse dos esposos, mas pode envolver outros interesses na lide.
O contrato de compra e venda(6), na atual civilística argentina, continua a gerar a maioria dos casos práticos de utilização do direito na vida cotidiana e, por isso mesmo, adquire vultosa importância. Na obra mencionada, a análise do instrumento jurídico é feita principalmente com base no Código Civil, mas relaciona-se também ao Código de Comércio argentino, à jurisprudência e ao direito comparado. Ou seja, também no contrato de compra e venda verifica-se a tendência à análise ampliada e transversa dos temas, especialmente em tempos de globalização.
Os danos ocasionados pela prestação médico-assistencial(7), tanto na Argentina como no Brasil, são dignos de atenção, enquanto que lá se busca atualizar as idéias clássicas. Com efeito, a responsabilidade civil argentina vem sofrendo uma profunda transformação nas últimas três décadas, em virtude da qual se converteu o princípio pro damnato em um dos pilares do direito privado atual. Desse modo, nos sistemas assistenciais de saúde, é comum que o médico passe a exercer uma medicina defensiva, com reflexos inequívocos na relação médico-paciente e quiçá na prestação do serviço em si. O exercício grupal da medicina é um capítulo à parte, que remonta à divisão do trabalho e à responsabilidade coletiva.
Para encerrar este breve artigo com chave de ouro, cumpre mencionar a importância da obra de Alberto J. Bueres, para o Direito Civil como um todo e, mais especificamente, sobre Obrigações, particularizadas no caso da responsabilidade civil dos médicos(8). Com efeito, a obra renovada e atualizada de Alberto J. Bueres tem servido como um guia para muitos juristas que o citam em profusão, em diversos países das Américas e da Europa. O autor comenta como a multiplicidade de fenômenos atuais que se verificam nas relações jurídicas que envolvem a profissão médica e a farta literatura jurídica publicada sobre o assunto, também nos países da Common Law, têm surtido efeito que alguns chamam de revolucionário sobre a responsabilidade médica, a ponto de muitos autores falarem sobre a existência de um Direito Médico, como matéria autônoma.
Assim, pincelando alguns tópicos esparsos da civilística argentina atual, pode-se sumarizar o desenvolvimento desses temas no País vizinho restando, a cada qual, as inferências sobre a comparação e as influências do direito privado lá e aqui.
Notas:
(1) WIERZBA, Sandra M. Responsabilidad civil del abogado. Buenos Aires: Hammurabi, 2006.
(2) COSSARI, Nelson G. A. Daños por molestias intolerables entre vecinos Exceso de la normal tolerancia. Buenos Aires: Hammurabi, 2006.
(3) GESUALDI, Dora Mariana. Responsabilidad de los padres por hechos ilícitos de los hijos. Buenos Aires: Hammurabi, 2006.
(4) DUTTO, Ricardo J. Daños ocasionados em las relaciones de família. Buenos Aires: Hammurabi, 2006.
(5) AZPIRI, Jorge O. Régimen de bienes en el matrimonio. 2.ª Ed., Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
(6) CASO, Rubén H. Compagnucci de. Contrato de compraventa. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
(7) COSTA, Carlos A. Calvo. Daños ocasionados por la prestación médico-asistencial La actuación de los operadores del ?sistema de salud? analizada a través de la doctrina y la jurisprudencia. Buenos Aires: Hammurabi, 2007.
(8) BUERES, Alberto J. Responsabilidad civil de los médicos. 3.ª Ed., Buenos Aires: Hammurabi, 2006.
Este artigo é dedicado ao ilustre amigo e editor Jose Luis Depalma, com o reconhecimento pelo importante papel que desempenha na disseminação do conhecimento jurídico. Maria Francisca Carneiro é doutora em Direito, mestre em Educação, bacharel em Filosofia, pós-doutoranda em Filosofia.