Ato da Corregedoria da Justiça paulista (de 15/1/08) cassou a primeira decisão. Certamente a segunda terá o mesmo destino. Tudo foi feito com base nas Normas de Serviço da própria Corregedoria. Entendeu-se que tais normas valem mais do que a Lei de Execução Penal (que é federal). Enfocou-se o ato do juiz como puramente administrativo, sujeito ao controle do corregedor. Nada mais equivocado do ponto de vista jurídico; nada mais autoritário do ponto de vista político; nada mais insensível do ponto de vista humanitário. No exercício da sua jurisdição, o juiz não é ?delegado? do corregedor.
Contra esse ato do corregedor os doutores Fernando Rodolfo M. Moris (defensor público), Ademar Pinheiro Sanches (presidente da OAB local) e Manoel M. Gonzaga (promotor de Justiça) ingressaram com representação junto ao Conselho Nacional de Justiça que, certamente, irá rever o ato da Corregedoria paulista.
O Brasil é o quarto país do mundo no item explosão carcerária. De 1990 até 2008 o crescimento populacional penitenciário foi de 500%. Fechará o ano de 2008 com cerca de 500.000 presos. Alcançamos já o quarto posto mundial em número de presos (cf. Julita Lemgruber, em Diário de Notícias de 29/11/07, p. 1). Nesse item, o Brasil só perde para EUA (cerca de 2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (cerca de 0,8 milhão) (cf. World Prison Population List, do International Center for Prison Studies do King?s College de Londres www.kcl.ac.uk). Já ultrapassou a Índia, que conta com mais de um bilhão de habitantes.
O ato da Corregedoria citado impede o castigo justo e civilizado. Perpetua a clássica postura do ?hands off? (lavar as mãos, não se intrometer, não interferir). Isso significa conivência criminosa com o Poder Executivo. É dessa forma que o Brasil está se candidatando para ser o país número um do mundo em violência e corrupção.
Elogiáveis as decisões dos juízes de primeira instância. É preciso dar um basta a essa política de encarceramento massivo, que coloca o preso em situação degradante e torturante. Com certeza o Brasil vai ser condenado muitas outras vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violação dos direitos básicos das pessoas. Um país que é conivente com a deplorável situação carcerária que vivemos revela-se muito pouco civilizado.
Os homens, dizia Beccaria (Dos delitos e das penas, tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella, 3.ª ed., São Paulo: RT, 2006, Introdução), ?só após haver passado entre si mil erros, nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade, e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo, dispõem-se eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades (…)?. Como é impressionante (e chocante) ver em 2008 a repetição da mesma postura já vislumbrada em 1764 por Beccaria (Introdução): ?Pouquíssimos examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais… Pouquíssimos são os que, remontando aos princípios gerais, eliminaram os erros acumulados durante séculos, refreando, ao menos, com a força que só possuem as verdades conhecidas, o demasiado livre curso do mal dirigido poder, que deu até hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade?.
Cada um de nós abriu mão de uma parcela da nossa liberdade para ter tranqüilidade e segurança. ?O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir. O resto é abuso e não Justiça é fato, mas não direito… Todas as penas que ultrapassarem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas pela própria natureza.? (Beccaria, Capítulo II) ?Nenhum magistrado pode aplicar pena superior ao limite fixado na lei… o magistrado não pode, sob qualquer pretexto de zelo ou de bem comum, aumentar a pena estabelecida para um delinqüente cidadão? (Capítulo III).
O pensamento elitista, senzaleiro e escravagista que sempre preponderou em matéria de prisões não está levando em conta que ?a violação de um só pacto gera a autorização da anarquia? (Beccaria). Os grupos organizados dentro dos presídios vão reagir. Uma megarrebelião vai acontecer, porque ninguém mais suporta as atuais condições prisionais. Nem tampouco a insensibilidade dos que podem decidir. É estarrecedor constatar como ?ainda perduram no povo, nos costumes e nas leis, sempre atrasadas em mais de um século, (…) as bárbaras impressões e as ferozes idéias dos nossos pais setentrionais caçadores? (Beccaria).
Castigo justo e civilizado: essa é bandeira que deve ser levantada pelos corajosos juízes brasileiros dotados de sensibilidade e de responsabilidade. Elogiáveis as decisões dos magistrados citados. Chega de ?hands off? (omissão, servilismo, conivência com a desumanidade). Por mais tropeços que a vida civilizada possa encontrar, ainda assim, vale a pena percorrer esse caminho, que é o caminho da razão, da razoabilidade, da sensibilidade, da prudência e do equilíbrio. Que o CNJ casse prontamente o exorbitante ato da Corregedoria de São Paulo, fazendo com que o Brasil cumpra suas leis bem como os pactos internacionais por ele firmados.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais ? www.lfg.com.br)