Ato da Corregedoria de São Paulo impede o castigo justo e civilizado

castigojusto100208.jpgOs magistrados Gerdinaldo Quixaba (Tupã) e Cláudio Prado do Amaral (São Paulo) corajosa e sabiamente (ou melhor: civilizadamente), com base na atual Lei das Execuções Penais (art. 66, VIII), proibiram o aumento de presos nos presídios (superlotados) que se encontram sob suas jurisdições. São iniciantes de um movimento que poderia ser batizado como ?basta de tanta violação aos direitos humanos?. Muitos outros juízes do país deveriam seguir esse exemplo de civilidade porque a pena de prisão no Brasil alcançou níveis insuportáveis de crueldade e desumanidade. É torturante e degradante e não contribui em absolutamente nada para a ressocialização do preso. As cadeias e penitenciárias são fontes de tortura, discriminação etc.

Ato da Corregedoria da Justiça paulista (de 15/1/08) cassou a primeira decisão. Certamente a segunda terá o mesmo destino. Tudo foi feito com base nas Normas de Serviço da própria Corregedoria. Entendeu-se que tais normas valem mais do que a Lei de Execução Penal (que é federal). Enfocou-se o ato do juiz como puramente administrativo, sujeito ao controle do corregedor. Nada mais equivocado do ponto de vista jurídico; nada mais autoritário do ponto de vista político; nada mais insensível do ponto de vista humanitário. No exercício da sua jurisdição, o juiz não é ?delegado? do corregedor.

Contra esse ato do corregedor os doutores Fernando Rodolfo M. Moris (defensor público), Ademar Pinheiro Sanches (presidente da OAB local) e Manoel M. Gonzaga (promotor de Justiça) ingressaram com representação junto ao Conselho Nacional de Justiça que, certamente, irá rever o ato da Corregedoria paulista.

O Brasil é o quarto país do mundo no item explosão carcerária. De 1990 até 2008 o crescimento populacional penitenciário foi de 500%. Fechará o ano de 2008 com cerca de 500.000 presos. Alcançamos já o quarto posto mundial em número de presos (cf. Julita Lemgruber, em Diário de Notícias de 29/11/07, p. 1). Nesse item, o Brasil só perde para EUA (cerca de 2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (cerca de 0,8 milhão) (cf. World Prison Population List, do International Center for Prison Studies do King?s College de Londres www.kcl.ac.uk). Já ultrapassou a Índia, que conta com mais de um bilhão de habitantes.

O ato da Corregedoria citado impede o castigo justo e civilizado. Perpetua a clássica postura do ?hands off? (lavar as mãos, não se intrometer, não interferir). Isso significa conivência criminosa com o Poder Executivo. É dessa forma que o Brasil está se candidatando para ser o país número um do mundo em violência e corrupção.

Elogiáveis as decisões dos juízes de primeira instância. É preciso dar um basta a essa política de encarceramento massivo, que coloca o preso em situação degradante e torturante. Com certeza o Brasil vai ser condenado muitas outras vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violação dos direitos básicos das pessoas. Um país que é conivente com a deplorável situação carcerária que vivemos revela-se muito pouco civilizado.

Os homens, dizia Beccaria (Dos delitos e das penas, tradução de J. Cretella Júnior e Agnes Cretella, 3.ª ed., São Paulo: RT, 2006, Introdução), ?só após haver passado entre si mil erros, nos aspectos mais essenciais da vida e da liberdade, e depois de um cansaço de sofrer os males até o extremo, dispõem-se eles a remediar as desordens que os oprimem e a reconhecer as mais palpáveis verdades (…)?. Como é impressionante (e chocante) ver em 2008 a repetição da mesma postura já vislumbrada em 1764 por Beccaria (Introdução): ?Pouquíssimos examinaram e combateram a crueldade das penas e as irregularidades dos processos criminais… Pouquíssimos são os que, remontando aos princípios gerais, eliminaram os erros acumulados durante séculos, refreando, ao menos, com a força que só possuem as verdades conhecidas, o demasiado livre curso do mal dirigido poder, que deu até hoje longo e autorizado exemplo de cruel atrocidade?.

Cada um de nós abriu mão de uma parcela da nossa liberdade para ter tranqüilidade e segurança. ?O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir. O resto é abuso e não Justiça é fato, mas não direito… Todas as penas que ultrapassarem a necessidade de conservar esse vínculo são injustas pela própria natureza.? (Beccaria, Capítulo II) ?Nenhum magistrado pode aplicar pena superior ao limite fixado na lei… o magistrado não pode, sob qualquer pretexto de zelo ou de bem comum, aumentar a pena estabelecida para um delinqüente cidadão? (Capítulo III).

O pensamento elitista, senzaleiro e escravagista que sempre preponderou em matéria de prisões não está levando em conta que ?a violação de um só pacto gera a autorização da anarquia? (Beccaria). Os grupos organizados dentro dos presídios vão reagir. Uma megarrebelião vai acontecer, porque ninguém mais suporta as atuais condições prisionais. Nem tampouco a insensibilidade dos que podem decidir. É estarrecedor constatar como ?ainda perduram no povo, nos costumes e nas leis, sempre atrasadas em mais de um século, (…) as bárbaras impressões e as ferozes idéias dos nossos pais setentrionais caçadores? (Beccaria).

Castigo justo e civilizado: essa é bandeira que deve ser levantada pelos corajosos juízes brasileiros dotados de sensibilidade e de responsabilidade. Elogiáveis as decisões dos magistrados citados. Chega de ?hands off? (omissão, servilismo, conivência com a desumanidade). Por mais tropeços que a vida civilizada possa encontrar, ainda assim, vale a pena percorrer esse caminho, que é o caminho da razão, da razoabilidade, da sensibilidade, da prudência e do equilíbrio. Que o CNJ casse prontamente o exorbitante ato da Corregedoria de São Paulo, fazendo com que o Brasil cumpra suas leis bem como os pactos internacionais por ele firmados.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais ? www.lfg.com.br)

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo