Assim se passaram 40 anos

Pois foi no distante ano de 1964 (para muitos aterrador e início de um longo período de sofrimento), que pisei pela primeira vez numa redação digna do nome, ou seja, num jornal de verdade, o velho e combativo Diário da Tarde, de Florianópolis. Tirando o tempo de estudante em que editei uma farândola de boletins, jornalecos e revistinhas, a carreira, que agora completa 40 anos, começou mesmo no DT, fundado por ninguém menos que Adolfo Konder, coluna de uma das oligarquias políticas, esta de Itajaí, que dominaram o Estado por muitas décadas. A outra era a oligarquia dos Ramos, de Lages, onde possuía mais pinheiros e bois que as lotações do Maracanã por um ano inteiro.

A bem da verdade, a carreira havia começado antes da militância na imprensa estudantil, pelos idos dos 50, com os boletins semanais que escrevia e ilustrava a lápis John Faber n.º 2, em papel manilha, a moda do Sport Ilustrado, semanário editado no Rio de Janeiro, que toda segunda-feira um vizinho abonado comprava na banca do seu Beck, em Floripa, quando ainda nem se pensava na simpática abreviação do atual nome do Desterro. A finalidade? Ora, cobrir as rodadas do campeonato de futebol de botão que alguns garotos residentes em São José disputavam pari passu ao campeonato carioca, religiosamente seguido nas transmissões dominicais de Antonio Cordeiro e Jorge Cury, pela Rádio Nacional.

Meu time do coração era o Vasco da Gama (o expresso da vitória) e ainda me lembro, dessa época, da sua melhor formação em todos os tempos, base da seleção de 50: Barbosa, Augusto e Clarel; Eli, Danilo e Jorge; Tesourinha, Maneca, Ademir, Ipojucã e Chico. O Flamengo, que até hoje abomino, ia de Garcia, Biguá e Pavão; Jadir, Dequinha e Jordan; Joel, Rubens, Índio, Benitez e Esquerdinha. O Fluminense, não menos temido, entrava em campo com Castilho, Píndaro e Pinheiro; Pé de Valsa, Edson e Bigode; Telê, Didi, Carlyle, Orlando e Escurinho. E o Botafogo, da estrela solitária, um timaço, tinha Oswaldo, Gerson e Nilton Santos; Arati, Bob e Juvenal, Paraguaio, Geninho, Pirilo, Otávio e Braguinha. Didi foi o primeiro jogador brasileiro a ser vendido para o exterior, negociado com o Real Madrid, onde foi discriminado por ser negro. Depois surgiriam outros tantos craques fora de série como Vavá, Almir, Humberto, Evaristo, Pinga, Baltazar, Servílio, Del Vechio, Coutinho e Pelé. Saudosismo à parte, o curioso é que em 40 anos de jornalismo nunca trabalhei em editoria de esportes.

Lembro-me que desde o ginásio era dado à leitura e a cometer sandices literárias. A responsável por isso foi dona Francesa, amável vizinha que assinava a Alterosa, um show de revista publicada em Belo Horizonte, muito parecida com a Revista do Globo, comandada pelo Érico Veríssimo, em Porto Alegre. Dona Francesa me emprestava pilhas de revistas. Como ainda estavam recentes as marcas da Segunda Guerra, muitas das histórias traziam essa temática. Num dos meus arroubos, abrindo um conto que seria, certamente obra-prima digna de um Checov, não fosse a incomensurável distância que me separava do mercado editorial, copiei sem dó nem piedade “O inverno era tenebroso nos Apeninos”. O argumento do conto confesso que se esfumou, mas a frase que é de uma formosura literária incomparável jamais me saiu da memória. Um dia ainda começo um épico exatamente assim.

Como eu queria porque queria ser jornalista, nem o curso de teologia que fiz na faculdade adventista de São Paulo me segurou por muito tempo atrás do púlpito, que era onde minha mãe me queria. Ainda trabalhei um tempo na redação da editora denominacional, em Santo André, SP, quando obtive o registro profissional de jornalista na DRT local, no dia 2 de dezembro de 1970, sob o n.º 9.018, cujo assentamento foi feito às folhas 70 do livro 26.

Fui morar em São Paulo e arranjei emprego como redator num jornal dedicado ao público evangélico, idéia excelente que infelizmente não prosperou. O empresário que estava a frente do projeto almejava transformar o jornal no porta-voz do pensamento protestante no Brasil, que atualmente conta com 25 milhões de praticantes. Nessa época, o jornal fez várias coberturas de eventos nacionais e, uma vez, recebeu em sua sede para uma longa conversa o então governador Jimmy Carter, da Geórgia, membro da Igreja Batista, mais tarde presidente dos Estados Unidos.

Vim para Curitiba no início de 1974, e no dia 1.º de maio comecei a trabalhar n’O Estado do Paraná, com a chancela do professor Mussa José Assis, por indicação do estimado amigo Elon Garcia, que havia sido diretor comercial da TV Iguaçu. Em agosto, o Mussa me comunica que há interesse em minha transferência para o departamento de jornalismo da TV Iguaçu, e lá vou eu trabalhar sob as ordens de outro mestre que é o Renato Schwaitza, com quem aprendi demais. Desse tempo ainda lembro os colegas da reportagem chefiada pelo Adherbal Fortes, no Estado (Oscar Milton Volpini, Eloi Setti, Altamiro de Souza, Sérgio Maluf, Marilena Braga e Roseli Abrão, entre outros), e depois na Iguaçu, os cinegrafistas Rosaldo Marx e Jorge Santos, repórteres Tonica Chagas, Gilberto Larsen e Fernando Alexandre e os editores Luiz Manfredini, Maí Nascimento, Marilda Weigert e Ari Laurindo.

A secretária geral da redação era a Elisabeth Fortes e os apresentadores mais populares, Jamur Júnior, Sérgio Luiz, Laís Mann, Nadair Rodrigues e Sale Wolokita. As “vozes” eram de Chacon Júnior, as ilustrações de Attila Wensersky (Bixo) e os cortes do saudoso Osni Bermudes.

Ainda peguei uma fase muito boa do excelente Show de Jornal, que era o máximo naquele tempo. Um jornal de televisão que apresentava entrevistas sonorizadas, feitas com uma câmera de cinema Mitchel, com filmes 16mm, habilmente manipulada pelo pranteado Rosaldo Marx, a quem Schwaitza carinhosamente apelidara de Felinni. Como filme era matéria-prima importada, às vezes o estoque acabava e, então, os entrevistados deviam ser “carinhosamente” convidados a ir ao estúdio para gravar em tapes as suas falas.

Rosaldo e eu fomos os primeiros jornalistas paranaenses a gravar matéria no exato local onde se ergueria a monumental barragem da Usina de Itaipu, sob o ronco dos possantes tratores que faziam a terraplenagem do local. De quebra, subimos a Guaíra para filmar as estupendas Sete Quedas, desde então condenadas a desaparecer pela altura da quota de Itaipu. Hoteleiros, agentes de viagem, moradores e turistas, e mesmo o prefeito da época Kurt Walter Hasper nomeado pelos militares, botaram a boca no trombone contra essa decisão estapafúrdia, anos depois justificada pelo diretor-geral da usina, general Costa Cavalcanti: “O Brasil não precisa de belezas naturais e sim de energia”. O cara tinha tanta razão que pouquinha coisa aí atrás o País teve um monstruoso apagão, só não mais ridículo do que a entrega a preço de banana do filé mignon da nossa produção e distribuição de energia elétrica a grupos financeiros transnacionais.

No dia da grande geada negra de junho de 1975 fomos ao Palácio Iguaçu entrevistar o governador Jaime Canet Júnior. O gabinete estava repleto de bajuladores e penetras. Canet falaria sobre a devastação da cafeicultura ( só ele perdera um milhão de pés). Quando estava tudo pronto uma das lâmpadas da nossa iluminação estourou, e o barulho foi semelhante ao de um tiro. Foi um corre-corre dos diabos. Passado o frisson, Canet não perdeu a oportunidade de fazer troça:

— Se a minha segurança estivesse aqui vocês iam ver o que é bom pra tosse!

Noutra ocasião o vexame foi na Assembléia Legislativa, numa entrevista com o deputado Maurício Fruet, que então usava uma basta cabeleira. De novo a lâmpada estourou e justo uma partícula incandescente voou na direção do deputado, deixando-lhe imenso rombo na calça de tergal. Levamos Maurício para junto de uma janela a fim de aproveitar a luz natural e cumprimos a pauta do dia, sempre com o excelente humor do deputado, que não deixou por menos:

— Pela entrevista não cobro nada, mas a calça vocês vão ter que pagar!

Algum tempo depois recebi convite do Celso Nascimento para trabalhar na assessoria de imprensa da Secretaria da Agricultura, onde conheci o grande companheiro Eurico Schwinden, um dos melhores jornalistas de sua geração. Eurico tinha voltado recentemente de uma excursão do Colorado à África e Europa, da qual participara como jornalista convidado porque o CND exigia que todo time que saísse do País levasse um na delegação. De suas muitas histórias, uma ficou gravada. Na ilha de Madagascar, no principal jornal somente o redator-chefe escrevia à máquina. O resto da rapaziada cumpria o expediente na base do dedão. A julgar pela qualidade de alguns textos que andam sendo publicados ultimamente na imprensa brasileira até que a prática seria salutar.

Portanto, na Agricultura comecei minha peregrinação pelo governo do Paraná. Estive na Secretaria do Planejamento, no segundo governo Ney Braga. Retornei à Agricultura com a vitória de José Richa e lá permaneci quatro anos. Fui assessor de imprensa do então secretário Claus Germer, um dos melhores quadros que vi atuar no serviço público em 25 anos de carreira, injustiçado por uma abjeta felonia e, afinal, exonerado a pedido do cargo que exerceu com raro brilhantismo. O governo Richa era um misto do conservadorismo mais rançoso com um estrato bastante definido da ideologia de esquerda. Dentre eles, o próprio Germer. Os choques foram inevitáveis e o secretariado dividiu-se em blocos antagônicos. Como sempre triunfaram os da direita.

Nos governos Álvaro e Requião, transferido para a Secretaria da Comunicação Social, tanto num como noutro, apesar de minha insuspeitada deficiência profissional, fui coordenador de imprensa, colaborando com os secretários Mussa Assis, Ricardo Cansian, Gilberto Griebler e Ericson Diotalevi, até ser exonerado pelo Mário Pereira, por quem sempre tive certa admiração. No primeiro governo Lerner passei a ser ignorado pelos mandaletes da comunicação, tido como “homem da confiança de Roberto Requião”. Em minha defesa direi apenas que a natureza que me marcou para sempre com um raciocínio obtuso, talvez para compensar, poupou-me dessa aludida deformação. Busquei asilo na Secretaria do Esporte e Turismo, onde estava a minha amiga Cecile Freire Krüger, onde o pouco que fiz deu-se na curta passagem de Silvio Barros pela pasta. Quando Oswaldo Magalhães dos Santos assumiu, a assessoria simplesmente foi desobrigada de sua função porque o novo secretário preferiu contratar um serviço externo.

Certo dia, ao chegar para mais uma jornada de plena inutilidade, vi o guarda-mirim instalado na solitária mesa que restara na sala. Perguntei-lhe o que havia se passado e do alto de sua recém-adquirida importância me fulminou:

— Mesa aqui, agora, só a minha!

Dei meia volta e fui para casa. Daí a pouco recebi notificação do INSS de que tinha condições de requerer o ingresso na inatividade, onde me encontro como uma espécie em extinção, embora com algumas insígnias a enfeitar a plumagem. As mais evidentes representam as pessoas a quem ajudei mas que hoje fingem não me reconhecer. Parafraseando o mau verso do lamentoso bolero, assim se passaram 40 anos.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo