1 Alterando a Constituição.
Desde a obra de Emmanuel Sieyés (1), as sociedades são regidas por normas jurídicas oriundas de dois planos distintos: o da Constituição e o da lei. O abade francês, no turbilhão da Revolução de 1789, concebeu uma forma capaz de dar legitimidade ao poder. Nascia a teoria do poder constituinte.A Constituição é fruto do poder constituinte originário. Somente este tem legitimidade para fazê-la. Elaborada a Constituição, esta não poderá ser renegada por nenhum outro poder. Mas, porque tudo na vida está em permanente mutação, a Constituição também pode ser alterada. Neste sentido, o poder constituinte originário insere na Constituição um poder e atribui-lhe legitimidade para isso. Trata-se do poder que, por ser encarregado de reformar a Constituição, chama-se poder constituinte reformador (derivado, instituído).
O escopo deste poder é exatamente reformar a Constituição, adaptando-a aos novos tempos. Ela pode ser alterada para atender aos reclamos dos membros do grupo social. De modo que falar-se em reforma da Constituição não é motivo, a priori, para causar espanto.
Encontra-se em curso o Projeto que almeja instituir ampla reforma do Poder Judiciário, que promete alterar profundamente a estrutura de poder do Estado brasileiro. Nota-se que ela, ao lado de trazer algumas inovações ansiadas pela sociedade, amarra suas algemas onde os poderosos sempre desejaram e jamais tinham conseguido: na liberdade dos juízes.
2 Os principais pontos da reforma do Poder Judiciário. O Projeto de Emenda Constitucional n.º 96-A/92, aprovado na Câmara dos Deputados e tramitando no Senado Federal, altera profundamente a Constituição na parte dedicada ao Poder Judiciário (arts. 92 a 126). Podem ser destacados os seguintes pontos como objeto de alterações: a) criação do Conselho Nacional de Justiça; b) instituição da súmula com efeito vinculante; c) diminuição da autonomia do Poder Judiciário; d) celeridade na prestação jurisdicional; e) responsabilidade patrimonial do Estado por ato jurisdicional; f) recepção de tratados internacionais como norma constitucional; g) criação do juízo arbitral; h) modificação dos critérios do chamado quinto constitucional; i) criação dos Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal; j) preocupação com os direitos humanos.
Procurar-se-á, no âmbito deste estudo, analisar os pontos do Projeto que se entendem mais importantes, deixando para outro momento a análise das inconstitucionalidades (controle externo, súmula vinculante e juízo arbitral).
2.1 Conselho Nacional de Justiça. O art. 15 do Projeto cria o denominado Conselho Nacional de Justiça, a ser composto por quinze membros, que devem ter idade entre 35 e 65 anos, eleitos para um mandato de dois anos, permitida uma recondução.
A proposta de composição deste Conselho é bastante eclética. Dele participan: a) um Ministro do STF; b) um Ministro do STJ; c) um Ministro do TST; d) um Desembargador do TJ, indicado pelos STF; e) um juiz estadual, indicado pelo STF; f) um juiz do TRF, indicado pelo STJ; g) um juiz do TRT, indicado pelo TST; h) um juiz do trabalho, indicado pelo TST; i) um membro do MPU, indicado pelo Procurador-Geral da República; j) dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da OAB; l) dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, sendo um indicado pela Câmara dos deputados e outro, pelo Senado Federal.
As principais atribuições do Conselho são controlar a atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, controlar os deveres funcionais dos juízes e zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura.
2.2 Autonomia do Poder Judiciário. No sistema de distribuição de competências públicas, cada poder, ao exercê-las, tem independência. Para que esta exista, é imprescindível que a cada poder sejam asseguradas a autonomia administrativa e a financeira. A Constituição de 1988 avançou neste ponto ao assegurar ao Poder Judiciário estas garantias (art. 99).
O Projeto atribui ao CNJ competência para realizar o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário. Ocorre que, conforme já visto, o órgão controlador é composto por alguns membros que estão localizados fora da estrutura deste poder. A previsão, concretizada, irá comprometer a autonomia que, embora não seja a desejada, tem garantido ao Poder Judiciário certa independência.
2.3 Celeridade na prestação da tutela jurisdicional. Trata-se de resposta a um anseio generalizado no grupo social. O art. 1.º do Projeto acrescenta ao art. 5.º o inciso LXXVIII, com a seguinte redação: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. E para que esta celeridade não seja apenas uma promessa, prevê que o número de juízes na unidade jurisdicional seja proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população (art. 7.º), bem como prevê, em várias hipóteses, que a justiça seja itinerante.
Faz-se necessário observar que esta regra está em consonância com os tratados internacionais que, preocupados com os direitos da pessoa humana, têm elaborado normas no sentido de que a prestação jurisdicional seja rápida e franqueada ao maior número de pessoas possível.
A inovação proposta vem ao encontro de princípios firmados na ordem internacional. O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, celebrado em 1966 e que o Brasil ratificou sem ressalvas em 1992, diz que qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser julgada em prazo razoável ou ser posta em liberdade.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), celebrada em 1969, também manifesta sua preocupação com a celeridade processual. Prevê que toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
A inovação inserida no Projeto trará enormes benefícios a toda a sociedade e evitará injustiças que, infelizmente, não têm sido muito raras neste ponto.
2.4 Responsabilidade patrimonial do Estado por ato jurisdicional. O Estado é patrimonialmente responsável pelos danos causados por ato jurisdicional. Tal entendimento decorre do princípio constitucional (art. 39, § 6.º), que não recepciona as regras inseridas no Código de Processo Civil (art. 133), no Código Civil (art. 15) e na LOMN (art. 49)). A responsabilidade patrimonial perante o jurisdicionado não é do juiz. É do Estado (2).
No entanto, o próprio Poder Judiciário deixou de firmar de maneira clara este entendimento, relegando o debate à doutrina. O art. 8.º do Projeto vem colocar termo à polêmica que perdurou ao longo do tempo. Preceitua que a União e os Estados respondem pelos danos que seus respectivos juízes causarem no exercício de suas funções jurisdicionais, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo. Deste modo, consagra-se vitoriosa a brava doutrina defensora da tese da responsabilidade patrimonial do Estado pelos danos decorrentes da atividade judiciária.
2.5 Tratados internacionais. O art. 5.º da Constituição de 1988 consagrou vasto rol de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Atento ao que vem ocorrendo na ordem internacional, acrescentou que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (§ 2.º).
Esta abertura, fruto do pensamento democrático que norteou a Assembléia Nacional Constituinte, permite que regras e princípios importantes consagrados na ordem internacional possam vir a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro.
O grande debate que se instalou na doutrina brasileira, com repercussão nos Tribunais, é saber em que nível a norma do tratado internacional é recepcionada. Ela ingressa no Direito brasileiro como norma constitucional ou como norma ordinária?
O Projeto consagra a doutrina que vem advogando bravamente a recepção da norma do tratado internacional com status de norma constitucional (3). Apenas condiciona, de modo acertado, que a votação se dê nos mesmos moldes da emenda à Constituição. A incorporação dos tratados e internacionais sobre direitos humanos deve ser aprovada, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, requisitos formais que são exigidos para a aprovação de emenda à Constituição.
2.6 Prerrogativa de foro. A Constituição atual, assim como as anteriores, consagra normas que prevêem a chamada prerrogativa de foro para algumas autoridades. Deste modo, dentre outras, tem prerrogativa de foro o Presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, os ministros de Estado o procurador-geral da República (art. 102, I, b), os governadores de Estado (art. 105, I, a) e o Prefeito do Município (art. 29, X).
O fundamento desta garantia é proteger o cargo. Seu efeito é fazer com que a pessoa que ocupa um cargo dessa importância seja julgada por um órgão hierarquicamente mais elevado. Ocorre que tal medida vinha garantindo a prerrogativa de foro a quem já não mais exercia o cargo. Recentemente, a jurisprudência firmou no sentido de que a prerrogativa de foro é assegurada enquanto perdurar o mandato. Cessado o mandato, deixa de existir a prerrogativa para quem era seu titular.
O projeto vem exatamente neste sentido. Fazendo uso da expressão “enquanto no exercício do cargo”, extingue automaticamente a prerrogativa com a vacância do mandato ou do cargo.
2.7 Quinto constitucional. A Constituição prevê que uma quantidade dos cargos dos tribunais seja preenchida não por juízes de carreira, mas por profissionais egressos do Ministério Público e da Advocacia. Deste modo, um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios será composto de membros do Ministério Público, dos quais se exige mais de dez anos de carreira, e de advogados, dos quais se exige notório saber jurídico, reputação ilibada e mais de dez anos de efetiva atividade profissional.
Prevê ainda a Constituição que os nomes deverão ser indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes. Recebidas estas indicações, em número de seis, o Tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subseqüentes, escolherá um de seus integrantes para nomeação.
O projeto suprime do Tribunal o direito de participar do processo de escolha. A lista tríplice, elaborada pelo respectivo órgão de representação de classe ou instituição, será remetida diretamente ao Poder Executivo, que tem prazo de vinte dias para fazer a nomeação.
2.8 Juizados Especiais na Justiça Federal. O Projeto determina ao legislador ordinário que elabore lei dispondo sobre a criação dos juizados especiais na Justiça Federal. O escopo é ampliar o âmbito de atuação do modelo de justiça consagrado pela Lei n.º 9.099/95, que instituiu os Juizados Cíveis e Criminais na Justiça Estadual.
É reconhecido por todos o sucesso que se vem obtendo com os Juizados instalados há poucos anos no Brasil no âmbito da Justiça Estadual. Embora esteja longe de consistir em solução aos graves problemas jurídicos (sociais) que afligem a sociedade, sobretudo a parcela menos agraciada cultural e economicamente, este novo modelo de solução dos conflitos sociais tem obtido acentuado êxito. E a inovação constitucional, levando este modelo de justiça ao âmbito da Justiça Federal, virá trazer benefícios aos jurisdicionados. Neste sentido, o legislador ordinário já se antecipou aprovando a Lei n.º 10.259/2001.
2.9 Direitos humanos. O século XXI será marcado pelo estudo dos direitos humanos (4). Está-se iniciando, portanto, a era dos direitos humanos. As preocupações, que não devem se apenas dos humanistas, mas de todas as pessoas, estarão voltadas para a garantia e a efetivação destes direitos.
O projeto, em vários momentos, trata dos direitos humanos. Em primeiro lugar, conforme já se examinou, quando dá às normas referentes aos direitos humanos produzidas na ordem internacional o status de norma constitucional, desde que preenchidos os requisitos exigidos para a emenda constitucional.
De outro lado, prevê a possibilidade de transferir para a Justiça Federal a competência para julgar crimes praticados com graves violações aos direitos humanos. Isto poderá ocorrer mediante o incidente de deslocamento de competência, a ser suscitado pelo procurador-geral da República.
Outra regra importante sobre direitos humanos vem consagrada no art. 20 do Projeto. Estabelece que o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional, a cuja criação tenha manifestado adesão.
O projeto contém várias outras inovações. Algumas, porém, flagrantemente inconstitucionais, como a instituição do controle externo do Poder Judiciário, da súmula com efeito vinculante e do juízo arbitral.
(1) SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. Trad. Norma Azeredo. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997.
(2) FACHIN, Zulmar. A responsabulidade patrimonial do Estado por ato jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001 (Biblioteca de Teses).
(3) CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, v. 1; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 3. ed., São Paulo: Max Limonad, 1997; BIDART CAMPOS, Germán J. Teoría general de los derechos humanos, Buenos Aires: ASTREA, 1991.
(4) Tese apresentada por Dalmo de Abreu Dallari. Aula ministrada no Curso de Pós-Graduação em Direito do Estado, na Universidade de São Paulo, em 14 de agosto de 2000.
Zulmar Fachin é doutor (UFPR) e mestre em Direito (UEL). Mestrando em Ciências Sociais (UEL). Professor de Direito Constitucional (Graduação e Pós-Graduação). Foi procurador-jurídico da Câmara Municipal de Londrina e assessor jurídico da Universidade Estadual de Londrina. Autor de vários livros.