?Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal.?(1)

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1) INTRODUÇÃO

No dia 7 de outubro do ano de 2006(2) entrou em vigor em nosso país a Lei n.º 11.343/2006 que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes, além do respectivo procedimento criminal. Para fins da Lei, consideram-se como drogas(3) as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. Até que seja atualizada a terminologia destas listas, denominam-se drogas as substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, especificadas na Portaria SVS/MS n.º 344, de 12 de maio de 1998 (art. 66).

Neste trabalho, interessam-nos, tão-somente, os aspectos procedimentais da nova legislação, sejam os da fase inquisitória, sejam os processuais propriamente ditos. O nosso estudo, portanto, não irá abordar a matéria relativa ao Direito Material (dos crimes e das penas), ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas SISNAD, à prevenção, etc.

2) DO PROCEDIMENTO PENAL

O Capítulo III do Título IV trata do procedimento penal, estabelecendo inicialmente que o ?procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.?

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Quando se tratar da prática das condutas previstas no art. 28 da lei(4) e, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37(5), ?será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais?.(6)

Tal como ocorre com as infrações penais de menor potencial ofensivo(7), nas condutas previstas no art. 28 (porte ou plantação para consumo próprio(8), ?não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários?. Exatamente como está previsto no art. 69 da Lei n.º 9.099/95. Caso ausente a autoridade judicial, tais providências ?serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.? Aqui, diversamente do que ocorre nas infrações penais de menor potencial ofensivo, não deve ser lavrado, em nenhuma hipótese, o auto de prisão em flagrante, ainda que o autor do fato não assine o referido termo de compromisso. Está vedada expressamente a detenção do agente.

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Após tais providências, deve ?o agente ser submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberá-lo?.

Já no Juizado Especial Criminal, o Ministério Público deverá propor a transação penal (art. 76 da Lei n.º 9.099/95); a proposta terá como objeto uma das medidas educativas (como define a própria lei) previstas no art. 28 desta Lei, a saber: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Diz a lei que quando se tratar das condutas tipificadas nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 a 37, ?o juiz, sempre que as circunstâncias o recomendem, empregará os instrumentos protetivos de colaboradores e testemunhas previstos na Lei n.º 9.807, de 13 de julho de 1999.? A propósito, o art. 41 dispõe que o ?indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços?. É a chamada delação premiada ou colaboração processual.(9)

Notas

(1)    De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 67.

(2)    A lei foi publicada no Diário Oficial da União do dia 24 de agosto, entrando em vigor 45 dias depois de oficialmente publicada, na forma do art. 74 da mesma lei.

(3)    A utilização da expressão ?drogas?, ao invés da anterior ?substância entorpecente?, atende a uma antiga orientação da Organização Mundial de Saúde (Rogério Sanches Cunha, ?Nova Lei de Drogas Comentada?, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 304).

(4)    ?Art. 28.Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1.º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. § 3.º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4.º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. § 5.º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6.º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II – multa. § 7.º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.?

(5)    ?Art. 33 Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1.º Nas mesmas penas incorre quem: I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas. § 2.º Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. § 3.º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28. § 4.º Nos delitos definidos no caput e no § 1.º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. Art. 34 Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa. Art. 35 Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 desta Lei: Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.200 (mil e duzentos) dias-multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas do caput deste artigo incorre quem se associa para a prática reiterada do crime definido no art. 36 desta Lei. Art. 36 Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 desta Lei: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa. Art. 37 Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 desta Lei: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e pagamento de 300 (trezentos) a 700 (setecentos) dias-multa?.

(6)    Observa-se que a Lei n.º 11.313/06, dando nova redação aos arts. 60 da Lei n.º 9.099/95 e 2.º da Lei n.º 10.259/01, determina a aplicação das regras de conexão e continência quando se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo e outras mais graves. Esta lei, ao menos neste aspecto, sofre a mácula da inconstitucionalidade (formal e material). Neste sentido, escrevemos no nosso livro ?Juizados Especiais Criminais?, Salvador: Editora Juspodivm, 2006.

(7)    A respeito, conferir o nosso ?Juizados Especiais Criminais?, Editora Juspodivm, Salvador, 2006.

(8)    Segundo Luiz Flávio Gomes tais condutas deixaram de ser crimes, foram, portanto, descriminalizadas, em razão do que dispõe o art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Penal. Ocorreu uma abolitio criminis. Esta matéria suscita forte divergência doutrinária, entendendo a maioria que não houve a descriminalização. A nosso ver, sem adentrar profundamente o tema (mesmo porque não é o objeto deste estudo), estamos com a posição do referido penalista. Com efeito, os conceitos de crime e contravenção são dados pela Lei de Introdução ao Código Penal que define crime como sendo ?a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente?. (Art. 1.º do Decreto-Lei n.º 3.914/41). Como se sabe, há dois critérios utilizados pela doutrina e pelo Direito Positivo para distinguir o crime da contravenção: critérios substanciais (que, por sua vez, subdividem-se em conceituais, teleológicos e éticos) e formais, como o nosso e o Código Francês. O Código Penal da Suíça, no art. 9.º disciplina igualmente: ?sont réputées crimes les infractions passibles de la réclusion. Sont réputées délits les infractions passibles de l´emprisonnement comme peine la plus grave?. Em França a classificação é tripartida: crimes, delitos e contravenções (art. 1.º). Evidentemente que mesmo os critérios formais ?pressupõem naturalmente atrás deles critérios substanciais de avaliação a que o legislador tenha atendido para efeitos de ameaçar uma certa infracção com esta ou aquela pena?, como anota o mestre português Eduardo Correia (Direito Criminal, Coimbra: Almedina, 1971, p. 214). Estas definições, por se encontrarem na Lei de Introdução ao Código Penal, evidentemente regem e são válidas para todo o sistema jurídicopenal brasileiro, ou seja, do ponto de vista do nosso Direito Positivo quando se quer saber o que seja crime ou contravenção, deve-se ler o disposto no art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Penal. O mestre Hungria já se perguntava e ele próprio respondia: ?Como se pode, então, identificar o crime ou a contravenção, quando se trate de ilícito penal encontradiço em legislação esparsa, isto é, não contemplado no Código Penal (reservado aos crimes) ou na Lei das Contravenções Penais? O critério prático adotado pelo legislador brasileiro é o da ?distinctio delictorum ex poena? (segundo o sistema dos direitos francês e italiano): a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade correspondentes ao crime, e a prisão simples a correspondente à contravenção, enquanto a pena de multa não é jamais cominada isoladamente ao crime.? (Comentários ao Código Penal, Vol. I, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 4.ª ed., p. 39). Por sua vez, Tourinho Filho afirma: ?Não cremos, data venia, que o art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Penal seja uma lex specialis. Trata-se, no nosso entendimento, de regra elucidativa sobre o critério adotado pelo sistema jurídico brasileiro e que tem sido preferido pelas mais avançadas legislações?. (Processo Penal, Vol. 4, São Paulo: Saraiva, 20.ª. ed., p.p. 212-213). Manoel Carlos da Costa Leite também trilha na mesma linha, afirmando: ?No Direito brasileiro, as penas cominadas separam as duas espécies de infração. Pena de reclusão ou detenção: crime. Pena de prisão simples ou de multa ou ambas cumulativamente: contravenção?. (Manual das Contravenções Penais, São Paulo: Saraiva, 1962, p. 03). Eis outro ensinamento doutrinário: ?Como é sabido, o Brasil adotou o sistema dicotômico de distinção das infrações penais, ou seja, dividem-se elas em crimes e contravenções penais. No Direito pátrio o método diferenciador das duas categorias de infrações é o normativo e não o ontológico, valendo dizer, não se questiona a essência da infração ou a quantidade da sanção cominada, mas sim a espécie de punição?. (Eduardo Reale Ferrari e Christiano Jorge Santos, ?As Infrações Penais Previstas na Lei Pelé?, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim, n.º 109, dezembro/2001). Comentando sobre a teoria do fato jurídico, o Professor Marcos Bernardes de Mello, assevera que a ?distinção entre crime e contravenção penal, espécies do ilícito criminal, é valorativa, em razão da importância e gravidade do fato delituoso. Os fatos ilícitos de maior relevância são classificados como crimes, reservando-se as contravenções para os casos menos graves. Em decorrência disso, as penas mais enérgicas (reclusão e detenção) são imputadas aos crimes, enquanto as mais leves (prisão simples e multa) são atribuídas às contravenções.? (Teoria do Fato Jurídico -Plano da Existência), São Paulo: Saraiva, 10.ª ed., 2000, p. 222).

(9)    Sobre delação premiada, remeto o leitor ao nosso ?Direito Processual Penal?, Editora Juspodivm, Salvador, 2006.

Rômulo de Andrade Moreira é promotor de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público do Estado da Bahia. Ex-assessor especial do procurador-geral de Justiça e ex-procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs na graduação e na pós-graduação. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Unifacs (Curso coordenado pelo Professor Calmon de Passos). Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da Unifacs. Membro da Association Internationale de Droit Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais -ABPCP. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Autor das obras ?Direito Processual Penal?, Rio de Janeiro: Forense, 2003 (1.ª ed., 2.ª tiragem) e ?Estudos de Direito Processual Penal Temas Atuais?, São Paulo: BH Editora.