Não pense por muito tempo. Responda o mais rapidamente que puder: qual foi o último romance que você leu? Em que circunstâncias? O que restou dele em sua lembrança?
As três respostas podem indicar os objetivos de um programa inicial de formação do leitor de literatura, de letramento literário. O termo letramento, ainda em processo de discussão e adoção, tem a acepção de uma apropriação da escrita e das práticas sociais a ela relacionadas. Para se ter melhores condições de comparação, podemos pensar que a aquisição da habilidade de ler e escrever por si só não constitui letramento, antes pertence a uma forma de alfabetização. No caso dessa nova concepção de leitura literária, tem que ser considerado que ela ?se faz via textos literários e compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio (..) e um processo de reformar, fortalecer e ampliar a educação literária que se oferece no ensino básico? ou ?que se encontra difuso na sociedade?, como quer Rildo Cosson em Letramento literário: teoria e prática, livro recém-publicado pela Contexto.
Para que essa formação não permaneça em nível de letramento lingüístico, algumas exigências precisam ser satisfeitas. Em primeiro lugar, a de caráter distintivo. Um texto literário não pode ser tratado da mesma maneira que um texto informativo, uma carta, um ensaio científico. A literatura faz da linguagem um uso particular, explorando as potencialidades da língua, em busca de efeitos estéticos surpreendentes. ?O segredo maior da literatura é justamente o envolvimento único que ela nos proporciona em um mundo feito de palavras?, afirma Cosson. E para que toda essa potencialidade possa ser aprendida (porque se aprende a ler literatura: não é dom, não é atávico, não é inato!), professor-alunos-leitores não podem abrir mão de conhecimentos específicos, adquiridos com pesquisa, indagação e práticas de interpretação compartilhada. Para que essa aprendizagem seja diferenciada e efetiva, torna-se necessário considerar as competências exigidas de um leitor de literatura, segundo Halliday, ?a aprendizagem da literatura, que consiste fundamentalmente em experienciar o mundo por meio da palavra; a aprendizagem sobre a literatura, que envolve conhecimentos de história, teoria e crítica; e a aprendizagem por meio da literatura, nesse caso os saberes e as habilidades que a prática da literatura proporciona a seus usuários?.
Pode parecer um programa ambicioso demais para os níveis de ensino brasileiros. Na verdade, quando assim considerado, denuncia a preguiça tropical, o desprezo nacional pelo saber, a pedagogia da facilitação. Para que se possa pensar num programa de formação de leitores que transcenda o mundo escolar e se prolongue por toda a vida, não podemos deixar a aprendizagem localizada, diminuída, restrita, submissa a avaliações limitadas ao ano escolar. Como se tem defendido em anos recentes, e usando artifício da linguagem poética, leitura é saber e sabor, binômio muitas vezes defendido nesta página.
Não se pode esquecer que interpretar é efeito natural dos textos; mas interpretar com saber é resultante de um complexo compartilhamento de conhecimentos, que produzem a melhor compreensão. Segundo Cosson, ?interpretar é dialogar com o texto tendo como limite o contexto. Esse contexto é de mão dupla: tanto é aquele dado pelo texto quanto o dado pelo leitor; um e outro precisam convergir para que a leitura adquira sentido. Essa convergência dá-se pelas referências à cultura na qual se localizam o autor e o leitor, assim como por força das constrições que a comunidade do leitor impõe ao ato de ler. O contexto é, pois, simultaneamente, aquilo que está no texto, que vem com ele, e aquilo que uma comunidade de leitores julga como próprio da leitura?.
A desmemoriada, curta e superficial passagem dos livros literários pelos olhos e mentes dos leitores está a indicar, sem dúvida nenhuma, que a leitura se processou na base do bem-estar imediatista e barato, do exercício da sensibilidade à flor da pele, o que denomino com ironia a ?estética do arrepio?, isto é, se me causou uma impressão epidérmica, o texto é bom. Por este caminho desliza o trabalho com a literatura, sem marcas nem memória.
Não podemos esquecer, também, a presença maciça de livros falsamente literários, mais direcionados à aprendizagem de assuntos escolares (paradidáticos, didáticos com textos literários fragmentados e escolhidos para exercícios lingüísticos, os livros-jogo, os livros de imagens), do que estéticos e poéticos. Livros literários que, segundo Jorge da Cunha Lima, falam ?de assuntos sobre os quais não faz sentido dar aula: a paixão, a morte, a amizade, o desconhecido, o imensurável, a busca da felicidade, a astúcia, os sonhos, as emoções humanas, a dupla existência da verdade, a relatividade das coisas, etc?. E continua, em sua defesa da literatura: ?Na verdade, ela [a literatura] pode falar sobre qualquer tema, todos os abordados pelos paradidáticos, por exemplo, só que sempre e sempre vistos pelo ângulo da subjetividade e da poesia?.
Essas distinções surgem em várias vozes que procuram criar diferenças para o material existente e que circula na escola, para que se compreenda que a leitura tem muitas faces, objetivos e objetos. Cabe ao professor conhecê-los todos, para que possa melhor desenvolver os trabalhos discentes e conseguir que, ultrapassado o tempo em que é seu aluno, ele reconheça mais tarde nos textos agora lidos sua validade e direcionamento. E possa principalmente ser capaz de responder a perguntas como as que iniciaram esta crônica em prol da literatura.