Verifica-se há muitos anos, entre juristas e acadêmicos, um crescente debate sobre o acerto de decisões judiciais que reconhecem a perda do objeto de mandado de segurança impetrado contra ilegalidades praticadas no âmbito de certames licitatórios, em função da superveniente adjudicação do contrato.

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Para uma melhor visualização do tema, imagine-se, inicialmente, que em um procedimento licitatório houve a declaração de inabilitação de certa empresa, a qual, inconformada, impetra mandado de segurança sob a alegação de que a decisão da comissão de licitação seria contrária ao que dispõe a lei, estando, por conseguinte, viciada. A liminar pleiteada para prosseguir no certame é concedida pelo magistrado.

Posteriormente – porém, ainda antes do julgamento do processo judicial -, a Administração encerra a licitação e adjudica o contrato a um terceiro, cuja proposta alcançou melhor classificação. Surge, com isso, a dúvida: teria o mandado de segurança perdido seu objeto?

Imagine-se, outrossim, hipótese diversa: o contrato é adjudicado à própria empresa impetrante, eis que ofereceu a melhor proposta. Estaria o mandado de segurança fadado à extinção por perda de interesse de agir da impetrante?

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Em ambos os casos, tanto a jurisprudência quanto a doutrina pátria costumam divergir. Aqueles que defendem a perda do objeto – posição majoritária, aliás, firmada no Superior Tribunal de Justiça – pautam-se no que se costumou designar por “teoria do fato consumado”, ou seja, a finalização do certame licitatório consolidaria a situação fática e impediria a discussão sobre atos pretéritos, ensejando, assim, a perda superveniente do interesse de agir da impetrante.

Nesse sentido, é cediço que uma das condições da ação – isto é, um de seus requisitos primordiais – consiste no interesse de agir do autor (art. 267, VI, Código de Processo Civil), que, em síntese, nada mais é do que a necessidade de se obter um provimento judicial e, ainda, que tal provimento seja útil para o caso concreto levado a conhecimento do Poder Judiciário.

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Assim, as decisões judiciais que tendem a reconhecer a perda do objeto discorrem que tanto a liminar concedida quanto a sentença de mérito que a confirmaria não seriam úteis para o impetrante, tendo em vista o fato já consumado, qual seja, a adjudicação do contrato, consoante precedentes do STJ.

Por outro lado, há quem considere inviável a declaração de perda do objeto do mandado de segurança, haja vista que, além de não se poder invocar a teoria do fato consumado, o impetrante ainda teria interesse em ver confirmada a liminar que lhe fora concedida e, por fim, reconhecida a ilegalidade praticada no certame licitatório – pedido principal do mandado de segurança -, a qual, aliás, não deixa de existir em virtude da adjudicação do contrato.

Além disso, a confirmação da decisão liminar, por sentença, teria importantes consequências práticas em ambos os casos aqui exemplificados. Na hipótese de a impetrante – autorizada a participar do restante da licitação por força de decisão liminar – não se sagrar vencedora, observa-se que ainda lhe subsiste interesse no julgamento do mandado de segurança, a fim de que a ilegalidade reconhecida pelo Judiciário – em caráter meramente sumário e precário pela decisão liminar – seja confirmada por sentença, ganhando, assim, o “status” de definitividade.

Diante disso, a classificação final da empresa impetrante no certame torna-se definitiva e ausente de vícios, possibilitando-lhe, inclusive, posterior contratação pela Administração, se, por algum motivo superveniente, o contrato firmado com a empresa originalmente vencedora venha a ser rescindido, conforme dispõe o art. 24, XI, da Lei Federal n.º 8.666/93. Nesse sentido, aliás, já decidiram os Tribunais Federais da Primeira e da Segunda Região.

Finalmente, não se pode olvidar do legítimo interesse que a empresa impetrante, em se sagrando vencedora do certame, também possui quanto à confirmação da liminar que lhe possibilitou participar das demais fases da licitação. Isso porque o eventual reconhecimento da perda do objeto da ação acarreta a denegação da segurança e a extinção do processo sem resolução do mérito.

É inequívoco, portanto, o risco a que se submeteria a empresa impetrante, pois, em função da denegação da segurança e da cessação da liminar, o ato coator impugnado voltaria a surtir efeitos desde o momento em que restou suspenso (Súmula n.º 405 do STF), acarretando a retomada da inabilitação da empresa impetrante que se sagrara vencedora do certame.

Desse modo, passaria a existir um vício no decorrer do procedimento licitatório capaz de gerar a nulidade do próprio contrato administrativo, segundo dispõe o art. 49, parágrafo 2.º, da Lei Federal n.º 8.666/93.

Atento a estas circunstâncias, o Ministro Mauro Campbell do STJ salientou, quando do julgamento do REsp 1.059.501/MG, que “entendimento diverso equivaleria a dizer que a própria Administração Pública, mesmo tendo dado causa às ilegalidades, pode convalidar administrativamente o procedimento, afastando-se a possibilidade de controle de arbitrariedades pelo Judiciário (malversação do art. 5.º, inc. XXXV, da Constituição da República vigente)”.

Como visto, há inúmeras consequências práticas decorrentes da denegação da segurança com base na perda do objeto do mandado de segurança, as quais não são solucionadas nem mesmo com a aplicação da mencionada “teoria do fato consumado”, salvo, vale destacar, as hipóteses em que, por força do decurso do tempo de tramitação do mandado de segurança, o contrato administrativo anteriormente firmado já foi executado ou se encontra prestes a ser concluído.

Aliás, mesmo nessa ressalva poder-se-ia verificar uma exceção, qual seja, a hipótese de a empresa impetrante sagrar-se vencedora do certame, executar o contrato e, neste ínterim, seu mandado de segurança ser denegado por perda do objeto.

Neste caso, a validade do contrato administrativo poderia ser questionada – mesmo sendo regularmente executado -, o que teria o condão de ensejar ao particular a situação extrema de se ver condenado a devolver os valores recebidos a título de lucro, sem se olvidar de outras cominações decorrentes de eventuais alegações de infração à Lei de Improbidade Administrativa.

Assim sendo, diante de todas as consequências aqui expostas, sem prejuízo de outras e, ainda, com o devido respeito às opiniões diversas, concluímos ser inviável, via de regra, a alegação e o reconhecimento de perda do objeto do mandado de segurança no âmbito de licitações em virtude da adjudicação do contrato, sobretudo quando há o prévio deferimento, pelo magistrado, do pedido liminar formulado pelo impetrante, sendo necessária sua confirmação por sentença para que seus efeitos perdurem de maneira definitiva.

Philippe Ambrosio Castro e Silva é advogado.