Muito se tem escrito [em manuais, sítios especializados etc.] a respeito da Lei 11.101/05 [que rege a falência e a recuperação da sociedade empresária e do empresário] e dos avanços que o diploma legal representa [em tese] no que se refere à tentativa de superação da crise na qual está mergulhada a entidade, proporcionando [ainda em tese] mecanismos de cunho jurídico-econômico para que ocorra [quanto possível] o soerguimento e o retorno efetivo ao mercado competitivo. Com efeito, a Lei 11.101/05 inegavelmente representa [certo] avanço no que diz com a legislação falencial, e também não menos certo que o Decreto-Lei 7.661/45, que regulou os institutos da falência e da concordata por praticamente 60 [sessenta] anos, não mais acompanhava o desenvolvimento econômico do país [especialmente a contar dos anos 1960], não descuidando do franco processo de industrialização brasileira(1). De fato, este diploma legal tinha o [inequívoco] espírito liquidatório-solutório, mas também [em tese, ainda] teria reforçado os poderes do magistrado, diminuindo o poder dos credores(2), sendo de somenos importância [em termos restritos da lei falencial] emprestar instrumentos capazes à tentativa de superação da crise [leia-se, concordata preventiva], ficando tal questão em segundo plano, até porque o favor legal somente abarcava os credores quirografários. Não menos certo que a concordata [preventiva], como meio de evitar a falência do devedor em crise se tornou uma verdadeira indústria.
Foram raras as empresas, sob tal favor legal (que [ainda] adotava a vetusta idéia de comerciante), que lograram êxito em retornar ao mercado competitivo, e a grande maioria simplesmente sucumbiu, com a convolação da concordata preventiva em falência, enquanto que a chamada concordata suspensiva foi outro mecanismo pouquíssimo utilizado e de quase nenhum resultado fático favorável à empresa falida.
Conforme é de relativa sabença, o Decreto-Lei 7.661/45 se filiava [fielmente] à Teoria dos Atos de Comércio [França, 1807] sendo que raros eram os juízes brasileiros que por assim dizer ousavam decretar a falência daquele devedor que juridicamente não se subsumia à idéia de comerciante, mas que de fato exercia atividade econômica organizada, com profissionalismo e franca habitualidade (muito embora não tivesse, de fato, seus registros constitutivos arquivados no Registro Público de Empresas [Junta Comercial]). Aliás, nesse passo, algumas entidades que se escudavam na sociedade civil limitada buscando o instituto da insolvência [Código de Processo Civil, artigo 748 e seguintes] para evitar, quanto possível, a falência judicial, nem sempre tinham sucesso na empreitada, pois os juízes, efetivamente, decretavam a retirada do mercado, mas em âmbito falimentar. Com o advento da Constituição Federal de 1988 [e vindo na sua esteira o catálogo constitucional, e mais precisamente os princípios que regem a atividade econômica]; sobrevindo ainda o Código Civil de 2002, que abarcou o direito empresarial, filiando-se efetivamente à Teoria da Empresa do direito italiano(3), de fato o país não mais poderia se valer de uma lei falencial [a de 1945] completamente ultrapassada, destoante da realidade e que não tinha como escopo a reorganização empresarial em crise. Nesse passo, não caberia, não teria mais lógica, o legislador ordinário manter, de fato, a Teoria dos Atos de Comércio na lei falimentar, considerando o contido na lei infraconstitucional e na própria Carta Política. Também, sob um outro viés, mas abrangente, não poderia o legislador ordinário transitar na contramão da evolução [natural] das legislações falimentares de outros países [Estados Unidos da América, Chile, Portugal e França, para aqui ficar em poucos exemplos], que há muito já tratam da recuperação da empresa, e buscam os meios para a solução da crise.
Nesse passo, um pequeno parêntesis desde logo cabe aqui ser levado a efeito. Evidentemente que o Decreto-Lei 7.661/45 tem qualidades jurídicas, tanto é verdadeiro tal asserto que vários de seus dispositivos foram praticamente copiados pela Lei 11.101/05, bastando um simples cotejo para verificar a realidade textual, e talvez o fato demonstre a [total] incapacidade de se produzir o novo em termos de legislação infraconstitucional no Brasil; a incapacidade deformante de buscar a inovação efetiva. De outro lado, também é inegável a [indisfarçável] capacidade jurídica daqueles que estiveram estreitamente ligados à elaboração do Decreto-Lei de 1945. A elaboração do anteprojeto de lei falencial, na era Vargas, contou com a efetiva participação de Alexandre Marcondes Filho [Ministro do Trabalho da era Vargas] Filadelpho Azevedo, Hahnemann Guimarães, Sílvio Marcondes, dentre outros juristas de nomeada.
Portanto, é de todo evidente que tal decreto-lei [de 1945] tem muitos méritos, sem descuidar que ainda rege, efetivamente, os processos de falência e concordata iniciados antes da vigência do novel regramento legal. Portanto, o país possui, a bem da verdade, dois diplomas legais, e relativos à falência e à reorganização da empresa em crise. Também é de sabença relativa que o Projeto de Lei 4.376/93, originário do Poder Executivo, dormitou tranqüilamente no Congresso Nacional por mais de 10 [dez] anos [sendo certo no Senado da República o Projeto de Lei teve o n.º 71/2003] até que, finalmente, em 9 de fevereiro de 2005, foi inserida no sistema legal brasileiro a Lei 11.101/05, que passou a vigorar 120 [cento e vinte] dias após sua efetiva publicação [em vigor, portanto, desde 9/6/2005]. Com efeito, se o decreto-lei de 1945, do pós-Segunda Guerra Mundial, tinha por assim dizer seus defeitos, a par de suas [inequívocas] qualidades, o mesmo pode ser dito [tão só em relação aos defeitos] no que se refere ao regramento jurídico falencial vigente a contar de 2005, e, naquilo que diz especificamente com o instituto da reorganização judicial [para já ir adotando aqui a terminologia estadunidense], é inexoravelmente direcionado não às micro e pequenas empresas, mas sim às médias e grandes corporações instaladas neste país, e que estão mergulhadas em crise. É pífia, totalmente inconsistente, sem qualquer simetria, a idéia disseminada de que a Lei 11.101/05, por assim dizer, reúne todos os requisitos [jurídicos e extrajurídicos, aliados a aspectos de cunho eminentemente econômicos] para a [tentativa] de soerguimento da empresa ou empresário em crise [para não dizer a respeito da própria sociedade simples, ausente da lei]. Isso justamente porque a referida Lei 11.101/05 possui a mesma tendência do modelo norte-americano em vigor [desde 1978], e porque é também é fruto direto de inequívoca importação legislativa: o âmbito da reorganização judicial é, de fato, a verdadeira arena devidamente montada em pilastras bastante sólidas, bem cimentadas, onde credor e devedor são verdadeiramente os atores principais em cena, e que têm por principal objetivo expor suas pretensões, ficando fora [completamente] de seus vocabulários, de seus ideários ou mesmo de seus discursos jurídico-econômicos palavras deveras simples, singelas e realmente relevantes, quais sejam, convergência, cedência recíproca e razoabilidade.
Para tanto, basta analisar com um pouco mais cautela, de forma racional [livre de qualquer emoção ou de maneira tendenciosa], isenta de prejulgamentos, alguns dos processos norte-americanos de reorganização judicial e falência, especialmente, para citar aqui poucos exemplos, os casos que envolvem montadoras transnacionais e companhias aéreas. Também não custa relembrar o escândalo que envolveu uma grande corporação estadunidense [de Houston-Texas], do setor de energia, que obrigou, inclusive, a edição da Lei Sarbanes-Oxley [de 30/07/2002], para fins de tentativa de controle de aspectos financeiros das companhias. Desde logo cabe salientar que o Bankruptcy Code de 1978 foi elaborado considerando a situação peculiar das empresas [em crise] norte-americanas e a própria economia de tal país. E mais especialmente o Chapter Eleven, que justamente trata da reorganização da empresa em crise, tem indisfarçável ligação, obviamente, com a realidade empresarial norte-americana, de modo que a Lei 11.101/05, [que trata da recuperação e falência no Brasil] por deitar profundas raízes na lei alienígena, deve ser interpretada, de fato, com muita cautela, sempre tendo ao efetivo alcance das mãos a Carta Política Nacional.
Busca-se [nos Estados Unidos, e agora também no Brasil] a dita solução de mercado para a efetiva superação crise [em uma ou mais das suas modalidades], franqueada pois a negociação direta das partes interessadas [credor e devedor, e, eventualmente, um terceiro interessado na injeção de recursos financeiros na empresa em crise, ou na própria aquisição desta ou de seus ativos], buscando, em última palavra, possíveis vias alternativas de solução para a crise e conseqüente reorganização empresarial.
A tendência segue, inequivocamente, a desregulamentação(4) [ou deslegalização] estatal, que anda fielmente sobre os bens fincados trilhos neoliberais, e vai atendendo aos anseios do capitalismo global [pois sabe-se que a China é, atualmente, o país oriental mais ocidental do mundo(5)]. Aliás, quanto à globalização econômica e seu eventual colapso, vale a pena ler atentamente [senão todo o escrito, pelo menos alguns trechos condizentes com a realidade brasileira e a globalização econômica] a obra de Alan Greenspan, editada no Brasil em 2007(6), sendo que nada passa despercebido da pena do autor, inclusive o Brasil e o populismo, temas que são objeto de percuciente e educativa análise, sendo que a pena do autor simplesmente logra pleno êxito em concatenar as idéias e faz com que o leitor fique motivado à completa leitura do texto em curto espaço de tempo. Para finalizar, quanto a este brevíssimo comparativo dos dois diplomas legais brasileiros a respeito da falência e da recuperação da empresa em crise, é deveras interessante transcrever o pensamento esposado por Michel Villey,
Como justificar o poder das leis positivas? Impossível recorrermos aos ?mitos? do direito divino dos príncipes, do contrato social, aos fantasmas ideológicos da soberania popular da ?vontade gera?, da representação do povo pelos deputados já que hoje pretende-se que as leis provenham de nossos deputados…(7)
Cabe pensar a respeito.
Notas:
(1) A respeito de interessante tema, ver as obras de Caio Prado Junior: História Econômica do Brasil e A Revolução Brasileira, dentre outras. Ainda, ver Celso Furtado, com a clássica Formação Econômica do Brasil e outra obra deveras importante: O Capitalismo Global.
(2) MAMEDE, Gladston. Falência e Recuperação de Empresas. 2.ª edição. São Paulo:Atlas, 2008, p. 14.
(3) Código Civil Italiano de 1942, artigo 2082.
(4) Não se olvide a tentativa neoliberal de desregulamentação [ou deslegalização] dos próprios direitos trabalhistas no Brasil. A propósito, ver matéria publicada no Jornal O Estado de S.Paulo, de 16/5/2007, A12. Ainda, nesse passo, ver a obra de José Eduardo Faria, O Direito na Economia Globalizada. 1.ª ed., 4.ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
(5) E seu inequívoco ideário capitalista [economia de mercado, abertura das portas para o mundo] teve início no final da década de 1970, com o líder Deng Xiaoping.
(6) A Era da Turbulência. Rio de Janeiro:Campus Elsevier, 2007. Nesta obra, deveras vigorosa e abrangente, o autor, ex-Chairman do Federal Reserve Board norte-americano revela alguns detalhes importantes de sua trajetória como pessoa e também como homem de negócios. A propósito, ver especialmente páginas 162 e 352.
(7) Filosofia do Direito. Definições e Fins do Direito. Os Meios do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 433. Grifos constantes do original. Tradução: Márcia V.M. de Aguiar. Revisão Técnica: Ari Sólon.
Carlos Roberto Claro é professor assistente de Direito Societário e Direito Falimentar
do Centro Universitário Curitiba [graduação]; mestrando em Direito Empresarial pela mesma instituição de ensino; especialista em Direito Empresarial, e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA]