Desde o Código Civil de 1916 até o Código Civil de 2002 as igrejas em geral não experimentavam tamanha inquietude e ansiedade quanto à sua personalidade jurídica. É que se viram excluídas do rol específico das pessoas jurídicas de direito privado disposto no Art. 44, do novo Código Civil, que elenca três incisos: I – as associações, II – as sociedades e III – as fundações. A conclusão mais lógica que chegaram os operadores do Direito é a de que a partir da vigência do novo diploma legal – 10/1/2003 – todas as igrejas, independentemente de suas constituições ou formas internas de governo, deveriam se adaptar ao novo ordenamento jurídico. E dentre as três opções descritas no referido Art. 44, e dado o seu caráter de não lucratividade das mesmas, restava apenas aquela disposta no inciso I – as associações.

Nesse sentido, alguns estudiosos da matéria, em razão das inúmeras e necessárias alterações estatutárias que a nova legislação exigiu das igrejas, proferiram palestras, encontros e escreveram páginas e páginas, publicando artigos, ensaios e livros, a fim de esclarecer e orientar dirigentes, líderes e fiéis, durante o transcorrer de 2002/2003, sobre a realidade atual pela qual o país enfrentava com a nova legislação, o que trouxe no seu bojo expressivas modificações em face da legislação anterior. Além disso, as igrejas em geral deveriam, ainda, observar o estabelecido no Art. 2.031, do novo Código Civil, de que “as associações […], terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência; […].”.

Por outro lado o ilustre Miguel Reale, revisor do Código Civil atual, curiosamente, escreveu artigo que foi publicado pela Folha de S.Paulo, em 5/7/2003, assentando que “as igrejas não são associações civis, pois se constituem livremente de conformidade com os fins que lhe são próprios e decorrem de seus atos constitutivos autônomos..” e mais, “essa diretriz é extensível a todos os tipos de associações, inclusive as de fins religiosos, sendo porém excluídas da determinação do Código as igrejas como tais, sujeitas, apenas, às normas fundantes e estruturais de cada culto. Ficam assim preservadas as peculiaridades das igrejas no que se refere ao seu livre funcionamento”. E como esteio dessas assertivas, transcreve-se o pensamento do mestre Rui Barbosa, campeão das liberdades religiosas, registrado nas Obras Completas, vol I, p. 105, que diz: “as igrejas, essas associações resultantes da identidade de crença, vivem livres para a adoração do seu Deus, na propagação de sua fé, na difusão de suas doutrinas, que elas, independente de qualquer poder estranho, possam elevar-se à adoração do eterno princípio de todos os seres; que, por seu lado, o Estado, único poder das sociedades livres, gire independente na órbita da sua ação, e não queira coibir os cultos senão quando eles ofenderem a ordem e a paz da sociedade; eis o nosso desideratum. Queremos, em suma, de um lado a perfeita liberdade para o Estado; do outro a perfeita liberdade para a consciência, ou, na frase de Lamartine – a Liberdade para Deus – “.

Paralelamente a isso, juristas e representantes políticos de diversas igrejas envidavam esforços para ser acatado o entendimento de que houve um defeito, um erro, uma falha quando da elaboração do novo Código Civil, esquecendo-se de acrescentar as organizações religiosas, como uma das pessoas jurídicas de direito privado. Assim, foram apresentados mais de dez Projetos de Leis (PL), durante o ano de 2003, elaborados por Deputados Federais, onde os parlamentares pretendiam sanar as acenadas irregularidades.

Após os trâmites que a Constituição exige para alterações legislativas, foi apresentado pelo Deputado Paulo Gouvêa, o PL n.º 634, de 2003, compilando os demais Projetos de Leis versando sobre a mesma matéria, cuja proposição visava acrescentar o inciso IV, ao Art. 44, da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – novo Código Civil. O PL n.º 634/2003 teve parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados Federais, sendo aprovado pelo plenário em 05.11.2003 e encaminhado ao Senado Federal. No Senado Federal a matéria foi apresentada através do PL n. 88/2003, sendo aprovado pelo plenário em 09.12.2003 e imediatamente encaminhado ao Presidente da República para sanção.

E em 22/12/2003, o presidente da República – Luiz Inácio Lula da Silva – sancionou a Lei n.º 10.825, que acrescenta o inciso IV, ao Art. 44, do novo Código Civil brasileiro, garantindo às igrejas em geral a personalidade jurídica, ou seja, incluindo-as no rol das pessoas jurídicas de direito privado e conseqüentemente concedendo-lhes autonomia administrativa e financeira sobre suas atividades e patrimônio. O ato solene foi acompanhado, além dos parlamentares, por representantes das igrejas católicas, evangélicas, pentecostais e neo-pentecostais e por operadores e estudiosos do Direito. Na cerimônia, o Presidente Lula, emocionado, lembrou que nas campanhas eleitorais, pastores e líderes religiosos lhe perguntavam se ele fecharia as igrejas evangélicas caso fosse eleito, em razão de comentários maldosos de adversários políticos. Por isso, declarou: “Aqueles que me difamaram, terão de pedir desculpas; não a mim, mas a Deus e a sua própria consciência.” O presidente foi, efusivamente, aplaudido pelos presentes.

Assim, a Lei n.º 10.825, de 22/12/2003, dá nova redação aos Artigos 44 e 2.031, da Lei n.º 10.406, de 10/1/2002, que instituiu o Código Civil, definindo as organizações religiosas como pessoas jurídicas de direito privado e desobrigando-as de alterar seus estatutos sociais no prazo previsto no mesmo Codex, restabelecendo, portanto, princípios anteriormente consagrados pela legislação brasileira e mantidos desde a instituição do Estado leigo, no que diz respeito à liberdade religiosa; respeitando, observando e cumprindo, na amplitude de seus preceitos, a Constituição da República Federativa do Brasil.

Adiloar Franco Zemuner é advogada, mestre pela UEL, professora de Direito Civil da UEL e Metropolitana-IESB – Londrina-PR (

adiloar@sercomtel.com.br).
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