1. A legislação que rege as cobranças feitas pela União Federal sobre os particulares que ocupam terrenos de marinha
No presente artigo vamos dedicar algumas breves palavras para explicar os fundamentos legais das cobranças feitas pela Secretaria de Patrimônio da União Federal (SPU) aos particulares que ocupam ou são titulares de domínio útil em terrenos de marinha, ressaltando que tais cobranças não se confundem com tributos.

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Primeiramente, o art. 20, VII, da Constituição Federal de 1988 define que os “terrenos de marinha e seus acrescidos” são propriedade da União Federal. Os referidos conceitos são definidos pelos arts. 2.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 9.760/1946, dispositivos recepcionados pela Constituição vigente, in verbis:

“Art. 2.º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés. Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

Art. 3.º São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha”.

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Cabe esclarecer que o “preamar-médio” indicado pelo Decreto-Lei n.º 9.760/1946 corresponde à localização física, no solo, da marcação média atingida pelas água por ocasião da maré-cheia (também chamada “crescente” ou “alta”). É de se criticar a extraordinária desatualização (177 anos) da medida utilizada pelo art. 2.º do DL n.º 9.760/1946 para determinação dos terrenos de marinha. Sabe-se que houve significativa alteração da orla marítima brasileira desde então, tornando a atualização do critério de medição uma medida urgente, por justiça e adequação. Com tal providência, inúmeros imóveis poderiam ser dispensados do pagamento de foros, laudêmios e taxas de ocupação por parte da União Federal.

Nesse sentido existem em trâmite diversos projetos de lei, como é o caso do Projeto n.º 4.316/2001, que intenta atualizar a medição da linha da preamar-média, em substituição à constante de 1831. Infelizmente o projeto não recebeu parecer favorável na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. Em recente parecer, o Deputado Federal Ricardo Berzoini votou em sentido desfavorável, justificando que o projeto de lei, ao tratar de providência passível de acarretar perda de receita relativa a foros e laudêmios (cuja receita é estimada em R$ 150 milhões de arrecadação apenas no exercício de 2008), não trouxe o necessário estudo de impacto orçamentário e financeiro nas contas da União Federal.

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O regime legal básico atual desses bens também é composto pelo Decreto-Lei n.º 2.398/1997 e pela Lei n.º 9.636/1998 e suas alterações posteriores (especialmente as Leis n.ºs 10.852/2004 e 11.481/2007, dentre outras).

Em sendo bens de domínio comum da União (também chamados dominiais ou dominicais), os terrenos de marinha podem ser objeto de enfiteuse (também conhecida como “aforamento”, ou seja, alienação do domínio útil) para uso, gozo e disponibilidade de particulares interessados, mantendo-se o chamado “domínio direto” (ou “nu-propriedade”) ainda em poder da União.

Nesse sentido, dispôs também a Constituição de 1988, no art. 49, § 3.º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que “a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”. Foi assim recepcionado o instituto da enfiteuse administrativa, para os terrenos de marinha, pela Constituição de 1988, e continua em vigor, mesmo após a extinção da enfiteuse civil, conforme fixado pelo Novo Código Civil (Lei n.º 10.406/2002).
Vamos a seguir identificar as cobranças que a União realiza sobre os ocupantes e titulares de domínio útil em terrenos de marinha.

2. A cobrança do “foro” e do “laudêmio”

Para remunerar-se da enfiteuse administrativa sobre os terrenos de marinha e seus acrescidos, cedidos para particulares, a União Federal, por meio da Secretaria de Patrimônio da União (SPU), realiza anualmente a cobrança do chamado “foro”, calculado em 0,6% do valor do domínio pleno do imóvel (art. 101 do Decreto-Lei n.º 9.760/1946). E na eventualidade do particular alienar o imóvel localizado em terreno de marinha ou acrescido, objeto de aforamento, ele deve pagar outra obrigação administrativa, o chamado “laudêmio”, em favor da União, correspondente a 5% do valor do domínio pleno do imóvel.

3. A cobrança da “taxa de ocupação” ou “contribuição à SPU”

No caso de um particular realizar simples ocupação de bem imóvel localizado em terreno de marinha ou seu acrescido(1), será dele cobrada anualmente a chamada “taxa de ocupação” (art. 127 do DL n.º 9.760/1946 cumulado com o art. 1.º do DL n.º 2.398/1987), também administrada pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), e calculada com alíquotas de 2% ou 5% sobre o valor do domínio pleno do terreno (base de cálculo), a depender da data da inscrição da ocupação perante a SPU, se anterior ou posterior a 31/3/1988.

4. Conclusões

De todo o exposto, parece-nos claro que não estamos aqui tratando de cobranças públicas de natureza tributária, nem mesmo no que diz respeito à chamada, impropriamente, de “taxa” de ocupação de terreno de marinha. Para nós, o uso de bens públicos não pode dar origem à cobrança de taxas, que ostentam natureza tributária. Taxas verdadeiras só existem as originadas do exercício do poder de polícia, ou da prestação de serviços públicos específicos e divisíveis(2).

Ou seja, o foro, o laudêmio e a “taxa” de ocupação de terreno de marinha aqui apresentados não são tributos, e sim preços públicos. Correspondem à chamada “receita própria” do Estado, advinda da exploração de seus próprios bens, situação diversa dos tributos, que são receitas derivadas do patrimônio de terceiros (particulares ou outros entes)(3). A jurisprudência de nossos tribunais (inclusive nos tribunais superiores) é firme em reconhecer caráter não-tributário às cobranças aqui em comento. Apenas para referência, veja-se a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do REsp n.º 995.963-PE(4).

Notas:

(1) A simples ocupação em regra não garante ao ocupante qualquer direito de propriedade, nem se confunde com o aforamento (enfiteuse). A União pode, em qualquer tempo que necessitar do terreno, imitir-se na posse do mesmo, promovendo sumariamente sua desocupação, como prevê o art. 132 do Decreto-Lei n.º 9.760/1946.
(2) Conforme dispôs a norma de competência autorizadora da instituição de taxas pelos entes políticos, vide art. 145 da Constituição de 1988, in verbis: “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (…) II taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;”
(3) Com a observação, lembramos que existem tributos, especialmente cobrados pela União Federal, que oneram financeiramente também os entes políticos, como é o caso de algumas contribuições especiais (v.g. contribuição ao PASEP).
(4) STJ, 2.a Turma, REsp. n.º 995.963-PE, Rel. Ministra Eliana Calmon, julgado unânime em 19/8/2008, DJU em 18/9/2008.

Rodrigo Caramori Petry é professor de Direito Tributário do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba). Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC-PR. Advogado e consultor Tributário em Curitiba-PR.