O direito a moradia digna constitui direito fundamental do cidadão. O financiamento imobiliário é um dos instrumentos que pode ser utilizado pelo Estado para cumprir a sua missão constitucional de permitir o acesso à moradia. Este foi o objetivo primordial do Sistema Financeiro da Habitação, criado pela Lei 4.380, de 21.08.1964. O SFH facilitava a aquisição da casa própria mediante a vinculação das prestações aos salários, garantindo que aquelas não excederiam a variação do salário mínimo e nem ultrapassariam um terço da renda familiar. O reajuste do saldo devedor seguia o mesmo critério.
O sistema parecia simples, mas as crises, os planos econômicos e a extensão do SFH desajustaram o sistema. Muitas vezes as prestações tiveram correções maiores que os salários, colocando o mutuário em desalinho e obrigando-o a reduzir o bem-estar de sua família para cobrir as prestações.
As mudanças ao longo dos anos descaracterizaram a proposta original. As prestações e o saldo devedor passaram a ser reajustadas pela Taxa Referencial e o resíduo do saldo devedor passou a ser responsabilidade do mutuário, com a extinção da cobertura pelo Fundo de Compensações e Variações Salariais. Nesse contexto, a Constituição Federal determina uma atuação obrigatória no sentido de realizar os direitos sociais, entre eles a moradia, assegurando a inconstitucionalidade de muitas regras atualmente aplicadas aos financiamentos habitacionais com recursos do FGTS e caderneta de poupança. No meu entender as principais são:
1) Reajuste pela Taxa Referencial, que fere o direito à moradia, impossibilitando o adimplemento e elevando em demasia os saldos devedores. O justo seria atrelar esses valores aos salários, com subsídios às classes menos favorecidas.
2) Taxa de juros de 12% ao ano: Os recursos do SFH são oriundos do FGTS e da caderneta de poupança, cujas taxas de juros são 3% e 6%, respectivamente. Pergunta-se: Por que assegurar um ganho financeiro de 9% e 6% ao ano a quem somente administra o contrato?
3) Capitalização composta: que decorre dos seguintes fatores: (i) Capitalização mensal da taxa nominal, que, desse modo, resulta na taxa efetiva. Assim uma taxa nominal de 10,5% ao ano corresponde a uma taxa efetiva de 11,02%. (ii) Amortização negativa, que ocorre quando o valor pago pelo mutuário não é suficiente e a diferença é incorporada ao novo saldo devedor que é reajustado pelo índice do contrato. (iii) Taxa Referencial, que é uma taxa de juros que inclui a remuneração àquele que emprestou o dinheiro. (iv) Sistemas de Amortizações, onde são utilizadas funções exponenciais para o cálculo das prestações (Tabela Price, Sistema Amortização Constante, entre outros). (v) Incorporação das prestações vencidas e seus acessórios ao saldo devedor, caracterizando a prática do anatocismo e onerando excessivamente o mutuário.
O Legislativo, Executivo e Judiciário devem adotar normas que assegurem à coletividade a aquisição da casa própria, cabendo ao Estado a obrigação da efetivação dos direitos sociais. O Poder Judiciário deve assegurar a ilicitude de muitas regras atualmente aplicadas, nulificando, modificando ou revisando as cláusulas abusivas e inconstitucionais, como aquelas que asseguram lucros financeiros em razão das taxas excessivas aplicadas, fixam critérios de reajuste em desalinho com a renda, permitem o anatocismo e formalizam contratos que ofendem os direitos protegidos pela Constituição e pelo Código Consumerista.
Alcio Manoel de Souza Figueiredo é advogado em Curitiba, professor universitário, com especialização em Direito Contemporâneo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos e em Administração Empresarial pela UFPR, mestre em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG Paraná, autor das seguintes obras sobre o assunto: (i) Cálculos no Sistema Financeiro da Habitação; (ii) Prática Processual no Sistema Financeiro da Habitação; (iii) Tabela Price & Capitalização de Juros; (iv) Sistema Financeiro da Habitação: Reflexos Econômicos e Financeiros (Org.); (v) Revisão do Contrato: Fundamentos da ordem civil-consumerista-constitucional para revisão e modificação dos contratos.
