Celso Augusto Coccaro Filho
A responsabilidade civil do Estado é objetiva. Dispensa a culpa, é estabelecida pelo nexo causal.
Essa é a conclusão que figura em apostilas e sinopses e que, simplista e incompleta, fundamenta grande número de ações indenizatórias ajuizadas em face do Estado. Tais demandas são fadadas ao insucesso, o qual não deve ser atribuído a alguma jurisprudência saudosista dos tempos nos quais ?o rei não podia errar?.
Tomemos como exemplo as árvores que caem ou os galhos das árvores que seguem o mesmo destino.
Em um dia qualquer, vamos pegar nosso carro, estacionado sob a fresca sombra de uma grande árvore, um pouco menos frondosa, eis que um enorme galho dela se destacou e repousa sobre o capô, que apresenta visível e muito onerosa concavidade. Indagamos aos vizinhos e passantes e somos informados de que um funcionário da Prefeitura resolveu podar a árvore, e o fez com sucesso, tanto é que o galho desabou sobre nosso carro.
Nesse caso, sinopse e apostila podem fundamentar nossa petição inicial: há nexo de causa entre a ação do servidor público (poda da árvore) e o dano no veículo, e não precisaremos demonstrar que o funcionário desconsiderou os mais básicos cuidados no exercício de sua tarefa (ou a sua culpa).
Digamos, porém, que os mesmos vizinhos e transeuntes simplesmente relatem que o galho caiu sobre nosso veículo, sem que nenhum funcionário público, de concessionária ou permissionária de serviço público, tenha sequer se aproximado do local. Ninguém sabe a causa, mas o galho caiu, fato visto por todos.
Será que, nesse caso, poderemos relatar o fato, e porque a árvore estava ou deveria estar sob o controle e a fiscalização da Prefeitura Municipal, afirmar a sua responsabilidade objetiva? Não precisaremos provar a culpa, decerto, mas e o nexo causal? Foi estabelecido entre o dano e o nada, que, até agora, qualifica o fato da queda da árvore?
Aqui, o conhecimento superficial de nada serve. A doutrina tenta estabelecer alguns parâmetros. Para Celso Antônio Bandeira de Mello (1), a responsabilidade aproxima-se da subjetiva, ou seja, deve ser demonstrada a culpa do Estado, consistente na falta do serviço, o qual deveria ter sido realizado, ou seja, deveríamos, então, demonstrar a existência da obrigação de manutenção ou pelo menos de fiscalização daquela árvore, e que sua condição fitossanitária inadequada (contaminação por cupins, impermeabilização do solo prejudicando as raízes, por exemplo) e a conseqüente queda do galho resultaram da culpa administrativa.
Celso Antônio Bandeira de Mello considera, porém, que a culpa do Estado deve ser presumida, o que nos liberará do ônus da prova dos fatos constitutivos do Direito.
Poderemos não concordar com esse enfoque e seguir a tendência privatista, menos publicista, de Gustavo Tepedino (2), para quem, nesses casos, a responsabilidade decorre do fato e dispensa a prova da culpa, o que não transforma o Estado em ?segurador universal?, pois poderá alegar a seu favor as excludentes do nexo causal. Caso escolhida essa opção, teremos de torcer para que o Estado não descubra e prove, por exemplo, que a queda do galho resultou da ação de algum relâmpago de excelente pontaria ou de terceiro, vizinho que decidiu cortar o galho para descortinar a vista da calçada.
Um novo enfoque foi trazido por Juarez Freitas (3), para quem a responsabilidade civil do Estado é guiada pelo Princípio da Proporcionalidade, que veda excessos ou omissões; ou seja, de que o Estado não pode agir com excessos (violência policial, por exemplo) nem de maneira insuficiente (não cuidar das árvores, por exemplo), e não se admite o ?Estado segurador universal? nem o ?Estado omisso?. A tese, calcada na proporcionalidade, criou nova excludente do nexo causal, qual seja a impossibilidade motivada no cumprimento do dever, que muito se aproxima da força maior. Nesse caso, em vez de nos preocuparmos com a culpa administrativa ou o dever de realização de serviços, teríamos de desviar nossas atenções para a identificação de lesão à desproporcionalidade, o que não é muito diferente.
A essa altura, talvez tivesse sido mais fácil fundamentar a nossa petição inicial naquela conclusão da apostila, em vez de buscar o aprofundamento. Não devemos desistir, porém, e observar calmamente o sentido da palavra omissão. Omitir não equivale ao simples não agir, ao silêncio, à inação. Há, na omissão, um dever legal ou moral de ação não cumprido. Na petição inicial, portanto, não deveremos simplesmente relatar a queda do galho de árvore sobre o nosso veículo, mas que a queda resultou, foi causada, pela omissão.
Alguns podem não concordar e alegar que essa conclusão restringe a responsabilidade do Estado. Será, então, que poderemos ajuizar aquela nossa demanda em face da União e não do município? Aqueles realmente imbuídos do intuito de receber a indenização diriam que não; a competência é municipal. Assim, o ?dever? é municipal e não federal, e, portanto, não posso validamente atribuir omissão à União, embora ela nada, absolutamente nada, tenha feito em prol da saúde da árvore.
Para facilitar, basta nos lembrarmos de que, em outros regimes da responsabilidade objetiva, o nexo de causa não é estabelecido entre o dano e a ação e a omissão. Na responsabilidade pelos fatos dos produtos ou dos serviços, por exemplo, o liame forma-se entre o defeito desses mesmos serviços e produtos e os danos deles decorrentes, com causa suposta e remota em ações ou omissões subjacentes.
Enfim, o nexo de causa não se estabelece entre o fato não qualificado queda do galho e o dano, mas sim entre a omissão do Estado que gerou a queda e o dano. Poderemos atribuir à omissão o nome de culpa administrativa, presumi-la e até mesmo divisar se houve quebra do Princípio da Proporcionalidade, mas não poderemos, sob pena de arcarmos com o estrago no capô e o pagamento de honorários ao município, desconsiderá-la, tratá-la como elemento inexistente ou concebê-la no âmbito da mera ficção de direito.
Notas:
(1) Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
(2) A evolução da responsabilidade civil no Direito brasileiro e suas controvérsias na atividade estatal. In: Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 191-216.
(3) FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade Civil do Estado e o Princípio da Proporcionalidade. In: Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006.
Celso Augusto Coccaro Filho é procurador-geral do município de São Paulo e professor no Complexo Jurídico Damásio de Jesus.