Para o presidente Lula não há problema algum em manter trancados os arquivos do regime militar por cinqüenta anos ou mais, conforme determina um decreto assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quatro dias antes de transmitir o cargo a seu sucessor. A depender do presidente, o que está catalogado como “ultra-secreto”, secreto continuará, pois “temos de superar este momento”.
O momento referido é este reaberto com a divulgação (por certo não acidentalmente) de algumas fotos supostamente do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 nas dependências do Exército, em São Paulo. Elas reavivaram fatos que causaram mal-estar em muitos setores da nação – da reação incontinenti de representantes das Forças Armadas a uma pública reprimenda do chefe do Executivo, pronunciamentos de políticos, opiniões diversas de norte a sul. Aquelas fotos seriam apenas como a ponta de um enorme iceberg de informações que – não há como negar – interessam sobremaneira à história recente do País.
Passada a borrasca principal, verifica-se melhor de onde sopram os ventos. Na avaliação de Lula, os casos de morte e tortura durante o regime militar devem merecer outro tipo de tratamento. Mas sempre pelo Legislativo e pelo Judiciário. “Esta questão não cabe ao Executivo”, disse o presidente no recente baile por ocasião do Dia do Aviador, em Brasília, a que compareceu e dançou. “O governo – ensinou Lula aos militares presentes à festa – deve se preocupar em gerar empregos e desenvolvimento.” Palmas.
Mas nem todos no Planalto concordam com Lula. O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, por exemplo, diverge abertamente. Afirmou no mesmo dia que está em análise, sim, a possibilidade de divulgar documentos relativos ao período da ditadura militar (1964-1985). “O governo – assegurou Dirceu – tem consciência de que essa é uma questão que tem de ser tratada com determinação, mas também com serenidade. As forças Armadas têm sido compreensivas. O País precisa cuidar disso de uma maneira que não volte ao passado, que não mude sua agenda democrática.”
Ainda segundo Dirceu, o governo quer “equacionar de maneira democrática” a questão do ato presidencial que resguarda o sigilo dos documentos. Ele confirma até que há possibilidade de alterar os termos do decreto de Fernando Henrique Cardoso. Para tanto, avisa que o governo ouvirá “até o Itamaraty” com muita cautela, pois “isso envolve várias questões de política externa do País, discussão sobre a segurança nacional e memória da ditadura”. Tudo será feito, ainda segundo Dirceu, “no seu devido tempo”.
O Brasil é um país grande e generoso. Também no seu devido tempo está pagando a peso de ouro a todos quantos se dizem prejudicados, de uma forma ou de outra, pelos anos de chumbo. Seja do lado dos reprimidos, seja do lado dos repressores, os indenizados até aqui já somam 5.540 pessoas desde a criação da Comissão de Anistia, em 2001. Segundo se noticia, outros 13.800 processos aguardam apreciação e julgamento. No meio do que até aqui foi decidido, tem indenização de até R$ 1,4 milhão, acrescida naturalmente de salários mensais que, em alguns casos, superam a casa dos R$ 23 mil. As três câmaras da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça julgaram, até pouco mais da metade de julho último, exatos 14.466 casos e mandaram o governo pagar cerca de R$ 1,4 bilhão em indenizações, mais R$ 267 milhões mensais em pensões, o que não é pouco.
Seria de perguntar – pois perguntar não ofende nem mesmo o espírito da Lei da Anistia – a quem interessa manter sigilo e a quem interessa a divulgação de documentos que podem ajudar ou atrapalhar tantos processos de pedidos de indenização ainda na fila de julgamento? Está evidente que, mais que uma questão política, estamos diante de uma questão econômica. Nesse sentido, a opinião de Lula deve prevalecer sobre aquela de Dirceu: que decidam sobre os arquivos do passado o Congresso e a Justiça. O Executivo precisa cuidar do nosso futuro.