A cena de um iraquiano abraçando um soldado americano e lascando um beijo no cangote dele, distribuída pela agência France Presse, é de produzir uma sucessão de interjeições. Afinal, somos latinos e estas coisas nos espantam. Além disso, há um universo de possíveis interpretações para um beijo, como já deixou evidente o dramaturgo Nelson Rodrigues. Um beijo é algo que não se esquece. Neste caso, há pelo menos três interpretações para o efusivo beijo do iraquiano.

A primeira, de natureza antropológica. O beijo para o ocidental tem um tempero erótico, vincula-se ao ritual que cedo ou tarde culmina com o enlace sexual. Mesmo o inocente beijo de saudação aplicado no rosto de pessoa conhecida revela um grau afetivo ou familiar. Um hábito hoje perdido tornava obrigatório o beijo na mão do pai, do padrinho e do padre. Enfim, o beijo para o ocidental é parte de um cerimonial.

No Oriente o beijo não tem apenas a função erótica ou cerimoniosa. É algo simples. Pode-se dizer que a função erótica seja a menos representativa. Um chefe de Estado beija o anfitrião no aeroporto sem o mero desejo sexual por ele. É um gesto amistoso, natural entre orientais. O mesmo ocorre na Rússia, para espanto dos homens latinos vendo aqueles marmanjos russos lascando beijos nos lábios uns dos outros, a torto e a direito. Assim, o beijo do iraquiano pode não ter passado de um gesto espontâneo de euforia, sem a menor consequência; pode refletir um estado de contentamento pela queda de um tirano, mesmo que não se tenha a menor idéia do que vá acontecer de agora em diante.

Em outra abordagem, o beijo envolve uma simbologia. Assim como pode resultar de uma euforia momentânea, aquele beijo pode significar exatamente o contrário. E se aquele homem, em vez de amistoso, for um homem bomba, dando o beijo da morte em seu alvo, feliz por levá-lo ao além? Afinal, o inimigo terá todos os dias cem chibatadas e ele, o herói, cem virgens. Não é para ficar feliz? Os beijos também podem ser fatais, como já o demonstrou o sr. Judas Iscariotes e não cansam de demonstrar mafiosos, que aplicam o beijo da morte nos que amam, escolhidos para morrer.

Finalmente, a terceira hipótese. Aquele beijo pode ter sido encenação. O iraquiano, na verdade, é um americano de origem oriental, aplicando um beijo no sargento, para a cena ser captada pelo mundo inteiro e interpretada como reação espontânea de gratidão de um povo dominado. Um serviço de publicidade do exército invasor. As cenas de velhos, mulheres e crianças mortas difundidas pela imprensa árabe foram poupadas ou por uma razão misteriosa não chegaram ao Ocidente. A vigilância severa dos Estados Unidos sobre a imprensa, as mortes excessivas de jornalistas no conflito (algumas sem explicações convincentes) e a clara intenção da imprensa americana de manipular a opinião pública de seu país, tornam factíveis esta hipótese. Esta guerra, como todas as outras, não foi uma guerra limpa. E as mentiras foram generosas. Vale qualquer coisa para os objetivos estratégicos serem garantidos. Por isso, aquele beijo pode não ser o que representa. Pode, simplesmente, não ser autêntico.

Mas, ainda assim, o beijo, como sabem os que beijam, é algo que nunca se esquece. E, autêntico ou não, o beijo do iraquiano tornou-se, também, um pedaço desta guerra.

Edilson Pereira (edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado

continua após a publicidade

continua após a publicidade