Apropriações, aspas e autoria

Ao início de mais um ano letivo, principiam também as buscas por textos e livros com a finalidade de realizar a, hoje, vulgarizada ?pesquisa?. Trabalhos de pesquisa, os usualmente denominados trabalhinhos, tornaram-se entre os estudantes de diferentes níveis do ensino a panacéia para as notas ruins, as faltas, os tapa-buracos do ensino.

Sou do tempo em que se pronunciava a palavra pesquisa acompanhada de um ar de gravidade. Relembro a maneira inovadora de ensino que a atividade individual de pesquisa trouxe à rotina da escola de transmissão de conhecimentos, até o início dos anos 60 predominante nos colégios brasileiros. Trocar a transmissão pela produção, a recepção passiva pela procura pessoal de novas informações e, principalmente, de argumentos para trocar idéias com colegas e professores, era um espanto educacional (além de nova metodologia, evidentemente).

Sem xerox e com bibliotecas de acervos diminutos (computador e Internet eram sonho futurista no Brasil e estavam eqüidistantes como o imaginário ficcional-científico de Júlio Verne), a pesquisa era um efetivo trabalho de garimpagem. Muitos colegas encontraram, por meio dela, o caminho da leitura continuada. O acréscimo e a diversidade que esse método inovador (dimensionem este qualificativo naquelas circunstâncias e no local em que se deram) trouxe ao conhecimento existente nas mentes dos estudantes, ainda devidamente uniformizados de azul-marinho e branco, foi o reconhecimento de uma descoberta: havia vida intelectual fora do manual de sala de aula e das palavras, densas de autoridade e verdade, dos professores.

Era uma das faces da metamorfose da escola-dona-do-saber&verdade para o viver-educação-de-verdade. O pedido de uma pesquisa pelo professor trazia, à época, o temor pela dificuldade de acesso às fontes e o desafio das peripécias que levavam às descobertas. Quem viveu aquele tempo, reconhece, sem idealização nem saudosismo, que a palavra ?pesquisa? afetava os alunos por sua gravidade, peso, objetivo engrandecedor.

Quando, nos dias de hoje, sou procurada por um aluno (às vezes, a mesma fala está em seus pais) para compensar faltas ou notas abaixo do nível desejado com ?trabalhinhos?, surge a imagem daquele tempo, nem tão distante assim, porque ainda consigo recuperá-lo enquanto vivência pessoal, em que o diminutivo indicava não a maior facilidade ou menosprezo, mas o menor volume.

Hoje, fazer uma pesquisa significa baixar arquivos inteiros da Internet, copiá-los sem ler, porque senão se transforma em trabalho e colocar a assinatura do contrabandista de textos. Nós, professores, submersos no tsunami da tecnologia e dos milhões de sítios internéticos, somos ludibriados pelo saque constante de nossos alunos ao lixo e ao substancioso (que, por vezes, existe) da rede imensurável de textos circulantes em meio digital. Ou então, pesquisa é sinônimo de intensa atividade ?recorta-e-cola?, mesmo quando ela se faz em livros. Para desespero dos bibliotecários (e alegria dos restauradores) livros utilizados para pesquisas escolares aparecem com freqüência recortados a estilete, ou rasurados e crivados de setas com dizeres como ?até aqui?, ?este não?, ?juntar com A1?, e por aí a fora. Essas marcas de leitura, longe de identificarem um diálogo com o texto, se assemelham ao rastro poluidor dos turistas em visita a um santuário ecológico.

Não pretendo afirmar que, mesmo a pesquisa à moda antiga, não consumisse grande tempo dos estudantes com o trabalho de cópia manual e com a colagem. Mas, ainda ingênuos, em relação à rapinagem de textos alheios, as pesquisas conseguiam manter o valor de identificação de autoria pelo uso de aspas e referências bibliográficas, perseguir uma coerência entre o que o professor indicava como objetivo do trabalho e o resultado apresentado, e colocavam a família de prontidão e em estado de socorro constante para fornecer revistas, livros e imagens para melhorar e ilustrar o esforço de busca.

Nada tenho a opor à facilidade da biblioteca universal de lixo e alguma substância em que se converteu a Internet e seu banco de dados, acessível com alguns toques de dedos e cliques de mouses. O que se perdeu foi, sobretudo, o objetivo educacional da pesquisa e a noção de propriedade intelectual. Aprendi, com o tempo, que originalidade não é sinônimo de invenção e de novidade, mas de reconhecimento da origem de uma idéia ou escrito, de vez que estamos sempre em processo de diálogo com as palavras de outros. E meu texto, seja oral ou escrito, absorve e aproveita textos de outros falantes e escritores. Não se trata, portanto, de exigir constante descoberta, precisão e inovação nas pesquisas científicas, realizadas na escola, (embora esses objetivos devessem estar presentes como critério de qualidade), mas de restabelecer o valor ético do compartilhamento identificado de textos assinados e de propriedade assegurada.

Com os meios de busca existentes na própria rede digital é possível localizar esses saques desavergonhados. Mas o dispêndio de tempo de trabalho e a sensação de ludibrio, que comandam a busca do professor, atuam de maneira negativa sobre o ensino e a educação. Além de devastar o campo da ciência pela vulgarização que o conceito vigente de pesquisa assumiu. 

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