Um dos “anões do orçamento” – lembra-se? – justificou sua fortuna no bom deus das loterias. Disse que, diferentemente dos demais brasileiros, tinha a sorte grande. Ganhava freqüentemente porque jogava sempre e podia jogar amiúde porque ganhava muito. E ninguém tinha nada com isso. Desconfiou-se que ele usava o jogo lícito para lavar dinheiro ilícito, roubado do povo. Mas, passado o calor dos debates na tumultuada CPI do Orçamento, tudo ficou por isso mesmo.
Agora que o governo, contra a parede com o caso Waldogate, manda fechar casas de bingo e caça-níqueis alegando que a jogatina, além de viciar pessoas de boa vida, serve ao mundo do crime para assessores, arrecadadores de campanha, traficantes e chantagistas, uma iniciativa no âmbito judicial tão simples quanto o ovo de Colombo pode colocar fim ao subterfúgio usado por todos os tipos de anões morais que se valem das loterias para a lavação de dinheiro: a Caixa Econômica Federal tem o prazo de sessenta dias para iniciar a identificação de todos os que apostam na sorte grande. Assim, garantir-se-ia o recebimento do eventual prêmio a quem efetivamente jogou, não a quem apresentar, depois, o bilhete.
Explicamos melhor: o procurador da República Vinícius Marajó Dal Sechi, da Justiça Federal da cidade paulista de Sorocaba, recomendou (com cópia ao ministro da Fazenda, Antônio Palocci) à presidência da Caixa Econômica Federal que torne obrigatória, no prazo de sessenta dias, a identificação dos apostadores de suas loterias on-line, com nome e RG ou CPF. Se não o fizer por vontade própria, a CEF poderá ser compelida a fazê-lo sob ordem judicial.
O procurador – como muitos outros da República – desconfia que as apostas sem identificação podem estar sendo usadas para a lavagem de dinheiro, porque os bilhetes dos jogos apostados on-line (tipo Loteca, Mega-Sena e Lotomania) não são identificados e os prêmios podem ser pagos a quem apresentar o bilhete premiado. Os esforços do Ministério Público Federal e das autoridades no sentido de reduzir ou eliminar os mecanismos de lavagem de dinheiro estariam sendo neutralizados com a falta de identificação dos apostadores.
A Caixa Econômica, ao que se sabe, não gosta muito dessa idéia. A instituição que controla inúmeros jogos em todo o Brasil (e poderá vir a controlar também os jogos de bingo se vitoriosa a tese da regulamentação, no Congresso Nacional) alega que a identificação dos apostadores causaria transtornos, como erros de digitação e assemelhados. Mas o procurador Dal Sechi avisa que seguirá adiante. Caso a Caixa não atenda a recomendação amigavelmente, promete abrir ação civil pública para obrigar a instituição bancária a adotar a medida.
Entendemos que assiste razão ao procurador. Em tantos outros lugares, e por muito menos, as pessoas são obrigadas a mostrar identidade, CPF ou mesmo comprovante de residência. Não vai nenhum exagero se o cidadão for convidado a dizer quem é ao tentar a sorte grande numa agência lotérica. Pessoas corretas e de boa-fé não sentem nenhuma dificuldade de se identificar onde quer que seja. Cada vez mais no mundo moderno o direito à privacidade vem sendo diminuído por questões de segurança e esta é uma séria questão de segurança. No mínimo, estaríamos todos colaborando outra vez para desmascarar anões e traficantes. A medida poderia mesmo ajudar o próprio apostador que, numa eventualidade de perda do bilhete (e são tantos os casos de ganhadores frustrados por esse motivo), teria seu direito ao prêmio assegurado mais facilmente.
Esse é um tema, aliás, que deveria estar sendo debatido seriamente no Congresso, no bojo de medidas amplas para a regulamentação adequada de todos os jogos, em substituição a medidas provisórias ditadas pela paixão momentânea que arranha a credibilidade do governo pilhado, através de agentes seus, nas cercanias do crime, favorecidos pelo anonimato reinante.