Apontamentos sobre o novo constitucionalismo

Se nos dias de hoje é perfeitamente possível fixar uma linha integradora entre a história e a ciência do direito em geral, com o direito constitucional não é diferente. Uma constituição é o que é a partir do que o estado que a instituiu vivenciou nos tempos que a precederam. Em outras palavras, trata-se de pura reflexão da experiência político-social(1).

O único problema é que muitas vezes, a partir desse fator, acaba-se por esquecer o que realmente deve ser relevante naquele momento, buscando socorro em soluções quase sempre emergenciais. Crê-se insistentemente que, com a reconstrução do passado, presente e futuro serão melhores.

Essa foi uma das reflexões do italiano Gustavo Zagrebelsky ao reconhecer que o direito constitucional tem renunciado a uma de suas principais tarefas: a de intentar sínteses histórico-culturais da época constitucional presente, para se firmar em uma contínua busca de meios emergenciais, perenemente retardatários e necessariamente instrumentalizáveis do ponto de vista político, contentando-se com o fato de ser um subproduto da história e da política(2).

Ao tratar da ascensão do novo constitucionalismo, percebe-se nitidamente essa tendência. Os resultados nefastos da Segunda Guerra Mundial serviram de base emergencial para uma visão valorativa do direito, a partir de três premissas: política, filosófica e teórica.

No campo da política, pode-se apontar a relativização do conceito de soberania como o principal fator da consagração das chamadas sociedades pluralistas e, por conseqüência, desse novo modo de pensar direito constitucional.

O conceito clássico de soberania interna, encarada como a imposição de um poder absoluto nas relações estatais singulares formadas com seus integrantes(3), aos poucos, foi sendo abandonado até chegar ao que hoje se conhece como a supremacia das constituições sem soberano(4), cujo objetivo principal é a não prevalência de um só valor ou de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente através de decisões que promovam sua concordância prática (praktischer Konkordanz)(5).

No campo filosófico, essa tendência também é justificada a partir do desenvolvimento e da superação dos ideais jusnaturalistas e juspositivistas.

Os positivistas adentraram o século XX com a sensação de que o saber jurídico finalmente encontrara seu status ideal: o Direito se resumia à verificação de pressupostos lógico-formais de vigência, livre de quaisquer juízos de valor acerca do dever ser. Enfim teríamos uma ciência dotada de objetividade e neutralidade. Ou talvez não fosse bem assim.

A crença na doutrina positivista da forma como teoricamente posta tinha tudo para se enquadrar nos parâmetros de uma teoria, ou seja, de uma atitude puramente cognoscitiva (de conhecimento) assumida pelo homem diante de determinada realidade e formada exclusivamente de juízos de fato. O que se viu ao longo da história, porém, foi uma ideologia positivista formada também por juízos de valores. Com isso o direito positivo não se limitou em um modo de entender direito (como se designaria uma teoria), mas sim de querer o direito (típica ideologia)(6).

Esse foi sem dúvida o maior dos pecados cometidos pelos juspositivistas. E o que é pior: o preço foi pago por toda humanidade.

O regime nazista chegou ao poder com base nas disposições da Constituição de Weimar e seus atos quase sempre discriminatórios e desumanos eram simplesmente acobertados pelo formalismo legal exaltado pelo positivismo. Os direitos fundamentais, nessa época, não passavam de mera lírica constitucional (Verfassungslyrik)(7).

E é no campo teórico que tais avanços mais refletem. A superação do método subsuntivo deu lugar à ponderação de interesses, estruturada pelo princípio da proporcionalidade e operacionalizada com a divisão do gênero norma jurídica em princípios e regras.

Sobre esse último aspecto é preciso esclarecer: regras são mandamentos prescritíveis aplicadas mediante subsunção. Dados os fatos regulamentados por uma regra, ou ela é considerada válida, incidindo pelo sistema tudo-ou-nada (all ar nothing)(8), ou é considerada inválida, sendo afastada do ordenamento. O conflito entre duas regras é solucionado pelos critérios da hierarquia, especialidade e cronologia(9). Já os princípios, possuem alta carga valorativa a ser otimizada diante do caso concreto. Por isso, são mandamentos de otimização, ou seja, normas que ordenam que algo seja realizado da melhor forma possível, dentre as possibilidades fáticas e jurídicas existentes(10). Eventual conflito entre princípios é resolvido através do princípio da proporcionalidade e seus três subelementos: adequação (Geeignetheit), necessidade (Erforderlichkeite) e proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit)(11).

Percebe-se claramente que a natureza principiológica que as normas constitucionais tendem a possuir, somada à presença inegável de colisões entre esses princípios em uma sociedade pluralista, fez com que a ponderação de interesses ganhasse maior importância e utilidade prática, abandonando cada vez mais o método subsuntivo. O Direito, em geral, passa por uma crise da abstração e generalidade legal. Ao invés de leis abstratas, prioriza-se medidas concretas (ordenações) acalcanhadas no modelo pluralista.

Por outro lado, a nova interpretação constitucional veio aprimorar os métodos clássicos de interpretação jurídica gramatical, lógico, sistemático e histórico , agora voltados à instituição de uma ordem constitucional efetiva.

Derruba-se o brocardo in claris cessat interpretatio (disposições claras não comportam interpretação). Cria-se uma filosofia da interpretação a partir do chamado círculo hermenêutico(12). Inicia-se um processo de unificação entre interpretação e aplicação do Direito em que o intérprete ganha maior liberdade de atuação, produzindo a norma para determinado caso concreto. As normas se distanciam dos textos legais, tornando-se o resultado da interpretação sistemática desses textos(13).

Em meio a essa multiplicidade de novas teorias interpretativas, unidade da constituição, efeito integrador, máxima efetividade, justeza ou conformidade funcional, concordância prática, força normativa e interpretação conforme a constituição os chamados princípios hermenêuticos despontam como um novo paradigma na dogmática constitucional moderna(14).

Notas:

(1)     A expressão é de Konrad Hesse em uma das críticas que fez a Lassale e sua ?constituição de papel? (cf. Lassale, Ferdinand. A essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998). Segundo Hesse, ?a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade?. Cf. Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Antônio Fabris, 1991, p. 24 e, do mesmo Autor, Grundzüge dês Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 16. Aufl., Heidelberg: C. F. Muller Juristischer Verlag, 1988, p. 3 e s.

(2)     Zagrebelsky, Gustavo. Historia y Constitución. Madrid: Trotta, 2005, p. 27-8; Fioravanti, Mauricio. Constitución: de la antigüedad a nuestros días. Madrid: Trotta, 2001.

(3)     Cf. Jellinek, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000, p. 405; Malberg, Carré R. Teoría General del Estado. México: FCE, 2001, p. 82; Pauperio, A. Machado. O Conceito Polêmico de Soberania. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 15.

(4)     Zagrebelsky, Gustavo. El Derecho Dúctil: ley, derechos, justicia. 4.ª ed., Madrid: Trotta, 2002, p. 13.

(5)     Hesse, Konrad. Grundzüge dês Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 26.

(6)     Cf. Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do Direito, São Paulo: Ícone, 1995, p. 223-4; Troper, Michel. Cos?è la Filosofia Del Diritto, Milano: Dott. A. Giuffrè, 2003, p. 13; Barroso, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), RTDP 29/45.

(7)     Alexy, Robert. ?Los Derechos Fundamentales en el Estado Constitucional Democrático?, in Neoconstitucionalismo(s), Madrid: Trotta, 2005, p. 33.

(8)     Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39.

(9)     Bobbio, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10.ª ed., Brasília: UNB, 1999, p. 92.

(10)     Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, Frankfurt, 1994, p. 76.

(11)     Cf. Pieroth/Schlink, Grundrechte Staatsrecht II, 22.ª ed., Heidelberg: C.F. Müller, 2006, p. 66-7; Pulido, Carlos Bernal. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 2.ª ed., Madrid: Centros de Estudios Políticos y Constitucionales, 2005, p. 725 e s. e passim.

(12)     Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988; Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método. Vols. I e II, Petrópolis: Vozes, 1997 e 2002.

(13)     Müller, Friedrich. Juristische Methodik, 5.ª ed., Berlin: Duncker & Humblot, 1993, passim.

(14)     Hesse, Honrad. Grundzüge dês Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, cit., p. 26-8; Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1998, p. 1096 e s.

Fábio Rodrigo Victorino é advogado. frvictorino@uol.com.br

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