Um dos temas mais controvertidos e recorrentes na doutrina penal brasileira, sem dúvida nenhuma, é a dicotomia entre a abolição e a permanência de uma Instituição bastante polêmica: o Tribunal do Júri.
De um lado, há aqueles que sustentam a extinção do Tribunal do Júri, a exemplo do professor Aury Lopes Jr., um de seus críticos mais severos. Os ataques à Instituição do Júri se estribam em três flancos. Em primeiro lugar, argumenta-se que o Júri seria uma Instituição historicamente superada, que, no passado, exerceu seu papel de alavancar o progresso democrático, mas, no presente, estaria defasado pelo avanço do tempo. Em segundo lugar, sustenta-se que o Tribunal do Júri constituiria um ponto de repouso dogmático sobre o qual seriam apregoados dogmas inatacáveis, como, por exemplo, o suposto mito de que se trata de uma Instituição democrática, quando, na verdade, a Democracia envolve questões muito mais complexas do que o reducionismo simplista da mera participação popular. Em terceiro lugar, a crítica não poupa golpes ao jurado: a uma, porque, segundo a ilação de Lopes Jr., os jurados ?não têm nada melhor para fazer e cuja ocupação lhes permite perder um dia inteiro (ou mais) em um julgamento?; a duas, porque ?os leigos estão muito mais suscetíveis a pressões e influências políticas?; a três, porque careceriam de conhecimento legal e dogmático mínimo; a quatro, finalmente, porque a decisão do jurado seria ilegítima porque supostamente arbitrária, na medida em que é carecedora de motivação, o que permitiria distorções decisórias fulcradas em aspectos muitas vezes discriminatórios ou preconceituosos, em retrocesso ao direito penal do autor.
De outro lado, há aqueles que defendem a preservação do Tribunal do Júri, a exemplo do Professor Francisco de Assis do Rêgo Monteiro Rocha, um de seus mais efusivos entusiastas. A defesa à Instituição do Júri se funda em três alicerces. Em primeiro lugar, o jurado julga de acordo com a sua consciência, sem as peias e sem vícios do positivismo rasteiro e despido do pensamento intoxicado pelo tecnicismo legal. Em segundo lugar, o Júri representa simbolicamente o mais expressivo ponto de contato entre o Judiciário e a sociedade. Em terceiro lugar, o sistema colegiado supera o sistema monocrático de julgamento, na medida em que o grupo tende a errar menos.
A despeito das críticas, é forçoso admitir que o Júri é uma Instituição que deve ser mantida, preservada, defendida, em nome do Estado Democrático de Direito. Erros, claro, existem. Adaptações devem ser feitas a fim de se acompanhar a marcha do progresso social. Mas isso não significa que mereça a abolição. Ao revés.
Neste sentido, aliás, quatro questões merecem reflexão.
A primeira questão diz respeito à geografia do Júri. Embora o Ministério Público seja custos legis, não obstante à sua função de fiscal da lei, apesar de tudo, cumpre assinalar que a disposição física dos protagonistas que engendram o Plenário do Júri deixa o representante do Parquet em lugar privilegiado, ao lado do juiz-presidente, como se fosse a própria voz do Direito, enquanto a Defesa fica relegada a um canto, cercada pela escolta militar, em nítido desequilíbrio visual. Com efeito, em nome da isonomia entre as partes, de duas, uma: ou o Ministério Público deve descer do pedestal geográfico no qual se encastela no Júri, para ocupar um lugar de igualdade com a Defesa; ou a Defesa deve galgar um espaço mais condizente com a envergadura de sua missão no Plenário. O que não se pode admitir é que a Defesa já inicie em manifesto desequilíbrio. Embora tal reivindicação possa parecer supérflua, a sagrada Tribuna da Defesa merece igualdade com o (não menos sagrado) Ministério Público na geografia do Júri.
A segunda questão que merece reflexão diz respeito ao banco dos réus. Nesta seara, insta destacar o missionário movimento capitaneado por Elias Mattar Assad, Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, que culminou na publicação do livro Abolição do Banco dos Réus do Recinto dos Tribunais, cuja leitura é essencial para compreender que o banco dos réus é um resquício medieval que degrada e viola o princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade como preferem alguns).
A terceira questão que merece reflexão diz respeito à (des)necessidade do uso de algemas por parte do acusado no plenário do Júri. Ainda que possa estar respondendo ao processo sob custódia cautelar, o simples fato de estar preso preventivamente não significa que o acusado deva permanecer manietado com os vexatórios braceletes. Os critérios de aferição da necessidade das algemas em plenário são distintos dos critérios de aferição da custódia cautelar. Isso também deve ser repensado.
Por fim, é necessário refletir sobre o sistema de quesitação adotado. Fonte inesgotável de nulidades, a quesitação brasileira merece passar por uma releitura. Só para citar um exemplo, a tese da legítima defesa é desdobrada em, aproximadamente, cinco ou seis quesitos, fora os quesitos referentes à autoria e materialidade. A combinação desses vários quesitos com outras teses pode criar um emaranhado confuso para Juízes, Promotores, Advogados e, principalmente (o que é pior), para os Jurados.
De qualquer modo, apesar das necessárias adaptações, a Instituição do Júri deve ser preservada. Com todo o respeito, as críticas não se sustentam.
Quanto à crítica de que a democracia é mais complexa do que o Júri, ninguém pretende reduzir todo o conceito de Democracia à Instituição Júri, nem tampouco reduzir a Instituição do Júri ao conceito de Democracia. Um conceito não está aprisionado ao outro. Mas são afins.
Quanto à crítica de que o jurado comete equívocos, basta dizer que o Juiz togado não erra menos. Os defeitos, os preconceitos e as vulnerabilidades do Júri não são menores do que os defeitos, os preconceitos e as vulnerabilidades da Justiça togada. Por uma razão muito simples: tanto lá, no Júri, quanto cá, na Justiça togada, os quadros são compostos por seres humanos. E, aliás, é para isso que os recursos estão previstos na legislação: para corrigir os erros e confirmar os acertos. O Júri erra? Erra. Mas, não por má-fé (ao contrário do que pretendem insinuar seus críticos). O Jurado (assim como a Justiça togada) leva a sério o que faz. Compenetra-se no recôndito de sua mais pura consciência para transbordar no veredicto a sua própria alma. Por outro lado, o Júri oxigena e dinamiza o Judiciário, trazendo soluções novas para certos casos, olhando para os fatos sob uma perspectiva inédita. É o Júri um grande responsável pelos avanços da Jurisprudência, pela adaptação da lei abstrata à realidade concreta de cada região geográfica, de acordo com os costumes, os hábitos e as tradições locais, o espírito do povo (Volkgeist), a verdadeira Justiça que nasce plantada no coração do homem e no seio da sociedade, que deve inspirar o legislador, conforme já apregoava Savigny.
Adriano Sérgio Nunes Bretas é advogado criminal em Curitiba, professor de Processo Penal, especialista em Direito Penal e Criminologia e membro do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal.