Pensar sobre o papel da universidade pública na formação do jurista coloca no Brasil contemporâneo, sob nossos olhos, a superação das impossibilidades, o ultrapassar das barreiras e a declaração mais forte e firme de que alcançar o outro lado da margem do rio é, ainda, a utopia necessária. Uma travessia que faz do jurista mais cidadão, da universidade mais compromisso e liberdade, e do Direito menos dogma.
É o momento que faz subir ao palco da vida três dimensões do exercício profissional pelo bacharel em Direito.
Numa primeira angulação emerge a dimensão ética, em face da qual por isso mesmo esse tempo é realmente singular e sem par, porque esta década redesenhou o estatuto ético das carreiras jurídicas e trouxe para o primeiro plano da cena pública a função social do exercício profissional.
Ao lado desse verdadeiro imperativo ontológico, como que numa marca genética, veio embutido o direito de nos orgulharmos de nossos afazeres, de nossa profissão e de nosso país, e o dever de prestarmos contas à sociedade dos meios e fins empregados.
Esse direito e esse dever descendem de um país que já sabe, na sua consciência cidadã, que uma Constituição não pode ser um mero pedaço de papel. Uma nação que repudia a sinecura e vai construindo, na democracia plural, o elogio do esforço e do mérito. Um povo que na sua dignidade não quer mais conviver com a troca de favores nem com o ócio remunerado.
Precisamente desse viés é que emerge a dimensão política do exercício profissional. O operador do Direito não convive com a cegueira social, não se cala diante das injustiças, nem pode jamais sucumbir à desesperança.
A construção de um Brasil socialmente justo, democrático e fraterno ainda embala nossos sonhos, e neles tem lugar de destaque a defesa da universidade pública, gratuita com ensino e formação de qualidade.
Esta época também é singular por isso mesmo, eis que lê-se que vivemos, no breve século XX, a era dos extremos, nos equilibrando entre contradições e paradoxos sobre alicerces parciais e irregulares. Lê-se, ainda, na recente obra de Hobsbawn, que o nosso tempo foi aquele que “despertou as maiores esperanças já concebidas pela humanidade e destruiu todas as ilusões e ideais”. O extremo dos poucos que têm tanto e de tantos que nada têm.
Este mesmo é o tempo que recoloca a força do poema de Neruda quando disse: “não procuro asilo nos ocos do pranto: mostro a cepa da abelha; pão radiante para o filho do homem; no mistério o azul se prepara para olhar um trigo longínquo do sangue”.
Esta é a geração que pode furtar a Drummond a constatação segundo a qual “este é tempo de homens partidos” porque “os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”.
É por isso que ao lado daquelas duas dimensões, a ética e a política, se aninha também, num terceiro e último patamar, o horizonte jurídico do exercício profissional, o qual conjuga nos verbos ser e agir, consciência e solidariedade. O jurídico que está no sentido e na razão de ser do Direito mostra ser imprescindível o apuro técnico do conhecimento e a atilada formação instrumental. É também isso que aguarda quem inicia uma jornada e quem a recomeça todos os dias.
Nos encontrarmos no modo de ver o que nos cerca, nos reconhecermos no modo de reconhecer menos os monumentos jurídicos, pela opulência exterior, mais pela essência através da sombra dos humildes e dos despojados projetada nas nossas retinas curiosas e sedentas de saber. Saber que é também reconhecer e valorizar a força simbólica que mantém viva a memória da tradição histórica de lutas e desafios.
Não importa se as circunstâncias sejam tão duras quanto um granito, pois o paradoxo da abertura e da clausura constituem o equilíbrio no instável.
Hoje, mais que ontem, nos unimos para celebrar o começo de uma travessia, travessia esta tal como descrita por Michel Serres, que soube, como ninguém, lembrar-nos que se aprende na solidão, mas nos realizamos na comunhão.
E para aprender, é preciso partir. Descobrir que o Direito não é uma evidência à qual devemos nos adaptar ou nos acostumar. O conformismo, quando menos, é de uma tocante tristeza. Razões e porquês devem povoar constantemente nosso espírito inquieto.
E para aprender, é preciso também resistir. Resistir num espaço público, espaço que abre possibilidades de estudo e pesquisa, livres e desembaraçados, e que capta a riqueza da inteligência, o fulgor do interesse acadêmico à luz do compromisso com a mudança social.
Esses são os nossos desafios e nosso chamamento. Eis o tempo contemporâneo que teima em promover a fuga do Estado para despir-se de seus deveres fundamentais. O descompromisso não abalará a formação dos juristas comprometidos com a realização dos direitos fundamentais, dentre eles, o da educação, com acesso justo, gratuidade e qualidade.
Subscrevo, por isso, sim, o pensamento da Edgar Morin, quando reconheceu que “a plena consciência da incerteza, do acaso, da tragédia, em todas as coisas humanas está longe de me ter levado ao desespero”.
E penso que tinha razão Shakespeare, numa dimensão da utopia necessária, quando por volta de 1600 escreveu que “somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos”.
Não proclamemos, por conseguinte, o fim da história no lusco-fusco deste século, mas sim o princípio da redescoberta, com os pés no chão, atentos à realidade, e com a cabeça nas nuvens, aptos para sonhar e realizar esses sonhos que acariciam os olhos de nossos ideais.
E quando fizermos, ao final dessa nova caminhada, o balanço de nossa geração e de nosso século, verificaremos se conseguimos levar nossa carga ao porto mais próximo, sob o leme das indissociáveis dimensões ética, política e jurídica de nosso mister, as quais constituem as três faces de um mesmo perfil. São as três faces de um mesmo perfil porque o operador do Direito, advogado, promotor ou magistrado, somente se completa quando são irmãs siamesas a ética, a política e o jurídico.
Confio que nessa travessia serão exercitadas, ao menos, essas três revelações do exercício profissional, e aí teremos compreendido a mudança de paradigmas que se instala entre nós como componente constante da condição humana.
Por ações ou omissões faremos nossas escolhas. Então, prestaremos contas para saber se mantivemos aceso o fogo da indignação que hoje arde em fortes labaredas. Se completarmos essa travessia, talvez aí encontraremos a resposta sobre a função da universidade pública na formação do jurista.
Queira o futuro ser vossa testemunha desse compromisso que hoje assumem.
Aos que hoje iniciam seus estudos, mirem, numa metáfora, o final do exercício profissional, e daqui tenho certeza que manterão a crença na Justiça, que somente é justiça quando se reconhecer na mesa em que falta trigo e pão, e quando apagarem-se as luzes da vida, encheremos nossa alma de admiração e respeito porque vivemos segundo aquilo que acreditamos.
Repito, ao final, o convite que a Faculdade de Direito da Universidad Bolivariana, no Chile, proclama orgulhosa para seus alunos: “Se crees que derecho es mucho más que recitar códigos, estamos de acuerdo”.
Sejam bem-vindos!
Luiz Edson Fachin é professor e diretor da Faculdade de Direito da UFPR. Mensagem aos calouros e acadêmicos de Direito.