(AE) – Caso Antunes Filho fosse diretor de uma companhia nacional, como as que existem na Europa e também na Argentina e no Uruguai, Foi Carmem Miranda seria apresentado não no palco principal, mas numa pequena sala. E não haveria demérito nisso. Nesses espaços são exibidos os experimentos, os trabalhos "não espetaculares", que exigem um espectador atento, menos preocupado em acompanhar a trama e mais interessado em completar significações a partir de sua experiência de vida e arte. Por isso, foi uma noite difícil para público e artistas a escolha desse espetáculo para a abertura do Festival de Teatro de Curitiba, ontem (16).

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"Estou com um grande problema", falou Antunes ao subir ao palco antes do início do espetáculo, uma hora depois do previsto, após muitos discursos de autoridades e patrocinadores, exibição de vídeos publicitários e até um teatrinho, à guisa de propaganda. "Depois de tudo isso, estamos todos excitados e ‘Carmem’ é um espetáculo de câmara. Vocês estão aqui, esperando ver a ‘Carmem’ do Antunes, vão se deparar com uma coisa singela, um quarteto de cordas, e vão achar muito ruim." Estava certo. Num espetáculo que chega a ter uma cena de total imobilidade e silêncio, o ranger de cadeiras foi uma trilha sonora constante e indesejável na noite.

Visivelmente chateado, mas com surpreendente serenidade, ainda antes do início do espetáculo, Antunes pediu dez minutos para o espectador "meditar". Pouco depois, ao som de um fado, entra em cena, em uniforme escolar, a atriz Paula Arruda como Carmem menina. Foi Carmem Miranda homenageia a um só tempo o mestre de butô Kazuo Ohno e a pequena notável Carmem Miranda (1909-1955), "brasileira" nascida em Portugal.

No palco, quatro ótimas intérpretes. Logo na primeira cena, revela-se um acerto utilizar a imagem da criança para tratar da criação como coisa lúdica e do desejo de fama em sua forma mais pura. Assim, a sedutora e sensual coreografia de Carmem Miranda nesse primeiro momento surge como uma deliciosa descoberta infantil das possibilidades de expressão do corpo. O desejo de ser aplaudido, igualmente, vem à tona no que tem de mais universal e humano, a necessidade, ligada nos primórdios à própria sobrevivência, de atrair atenção e amor no seio da família.

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Não por acaso, a essa primeira imagem corresponderá uma oposta, próxima ao fim do espetáculo, a qual começa por remeter ao ritual de incorporação como ocorre em rituais nos candomblés. O que vemos então é uma Carmem Miranda como que conduzida por seus balangandãs, como se a criança que um dia descobriu os movimentos de mãos e quadris tivesse depois perdido o domínio sobre eles, destino comum a muitos ídolos. Tais imagens são construídas com a limpeza, o rigor e a beleza que caracterizam as criações desse experiente diretor. Também Arieta Corrêa, com seu samba contido e triste, e Juliana Galdino, com suas muitas e sutis variações de movimentos de "malandro" têm belas criações. Mas é na cena final que o casamento entre butô e samba se dá da forma mais impressionante, na dança com máscara da bailarina Emilie Sugai.

Há ainda irregularidades em "Carmem", cujas melhores cenas são aquelas em que a narrativa se dá pelas imagens criadas na linguagem que se convencionou chamar de dança-teatro. Já as fragilidades acabam ficando por conta da aproximação com o teatro tradicional como a narrativa em fonemol. Antes de mais nada, as sonoridades criadas por Juliana remetem ao idioma germânico, o que provoca um sentimento de inadequação. Por que não um fonemol nipônico ou latino? Ainda assim, talvez não fosse mesmo necessário nesse espetáculo de imagens eloqüentes. Também a cena do malandro parece continuar "girando" por tempo além de sua significação. Alguns ajustes, e Carmem pode tornar-se um simples, delicado e bonito haicai.

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