Originariamente, a CF/88 denominou de remuneração os estipêndios conferidos aos titulares de mandato político. A propósito desse direito, José Afonso da Silva, o mais influente assessor do congresso constituinte, tece este comentário: ?Abandonando o termo subsídio, dá-se nova feição aos estipêndios dos parlamentares. Subsídio, de fato, guardava certo resquício de sua antiga natureza de mero auxílio, sem caráter remuneratório, pelos serviços prestados no exercício do mandato, mero achego com o fim e a natureza de adjutório, de subvenção, pelo exercício da função pública relevante. Mas, como já advertíamos em edições anteriores desta obra, hodiernamente assumiu caráter remuneratório, dado que o eleito deve manter-se, a si e à sua família, com a quantia que se lhe paga a título de subsídio, enquanto exerce o mandato?. Por isso, conclui o autorizado publicista: ?Foi correta, portanto, a mudança terminológica, de modo que o estipêndio assume, de vez, o sentido de pagamento por um serviço prestado?. (?Curso de Direito Constitucional Positivo?, Malheiros, 1995, 10.ª ed., p. 506).
Entretanto, transcorridos dez anos, a EC 19/98, restabeleceu a tradicional nomenclatura. Hoje em dia, ao invés de remuneração, os agentes políticos percebem subsídio. Desse modo, perante o conceito expendido por José Afonso da Silva, o ?salário? dos agentes políticos perdeu o inerente caráter de contraprestação de serviço e, com ele, a natureza de verba alimentar. Readquiriu, por outro lado, a índole honorífica.
Este registro preliminar, descortina o tema sobre o qual julgo pertinente aduzir considerações, que assumem alguma importância em razão de oporem-se à uníssona postura oficializada. Aliás, nisto reside a prêmio pelo árduo trabalho de respigar textos pouco ilustres, no adiposo corpo da Carta Magna.
Devo antecipar que, numa primeira abordagem, demonstrarei a falácia da exigência constitucional da anterioridade na fixação dos subsídios dos mandatários populares, ou seja, daqueles a quem o povo delega poderes, através das urnas democráticas. Restou a solitária exceção: o vereador. Na seqüência, o foco recairá sobre a eficácia da EC 25.
Assim, reproduzirei aqui os caminhos trilhados nessa pesquisa, iniciada com o regime de pagamento do Presidente da República, descendo pelos degraus da escala política até ao integrante da Câmara Municipal, situado na base.
1) Presidente e Vice: O art. 49, VIII, da CF/88, na redação original, incumbia o Congresso Nacional de fixar-lhes os subsídios, ano a ano. Textualmente: ?para cada exercício financeiro?. A EC 19, deu nova redação ao preceito, dele excluindo a anualidade. Ao deixar em aberto o momento da fixação, ignorou a anterioridade.
2) Deputado e Senador: Na redação original do art. 49, VII, da CF, seus subsídios eram fixados ?em cada legislatura, para a subseqüente?. A EC 19 mudou a redação do inciso VII, importando no corte das expressões acima aspadas. Igualmente, suprimiu a anterioridade.
3) Governador e Vice: A CF/88 era omissa a respeito do subsídio destas autoridades. Tanto isso é verdadeiro que a EC 19 incluiu, no art. 28, o § 2.º. Este, atribuiu à lei de iniciativa da Assembléia Legislativa a competência para fixar os seus subsídios, inclusive, o dos Secretários de Estado.
4) Deputado Estadual: Pelo teor original do art. 27, § 2.º, da CF/88, a sua remuneração era ?fixada em cada legislatura, para a subseqüente?. A EC 19 suprimiu as expressões antes aspadas e, com elas, a anterioridade.
5) Prefeito e Vice: De acordo com o art. 29, V, da CF/88, tal como fora editada, os seus subsídios eram fixados ?em cada legislatura, para a subseqüente?.
A EC 19 suprimiu as expressões aspadas e, com elas, a anterioridade?.
6) Vereador: Conforme visto, no advento da CF/88, seus subsídios eram fixados juntamente com os do Prefeito e do Vice. Viu-se também que, em 1998, a EC 19 extinguiu a anterioridade na fixação dos seus subsídios. Todavia, em 2000, a EC 25 apartou o seu regime de retribuição financeira da modelada para o Prefeito e o Vice, e restabeleceu-lhe a anterioridade. Esse trato diferenciado se consolida pela reposição, no texto do art. 29, VI, das expressões ?em cada legislatura para a subseqüente?.
Este quadro normativo, comporta observações divergentes da praxis oficial.
A primeira, já anunciada, revela a extinção do ?princípio? da anterioridade na fixação dos subsídios dos agentes mandatários, salvo os do vereador. Eis o resultado da sua interpretação, esta sim, verdadeiramente sistemática, encetada à luz da doutrina de Norberto Bobbio (?Teoria do Ordenamento Jurídico?, Polis/Edit. UnB, 1989).
A segunda deixa claro que a anterioridade é exceção à regra geral estatuída pela Carta Magna. Aplicado o critério hermenêutico adequado à esta hipótese, a referida exceção deve ser interpretada estritamente.
A terceira permite constatar a presença, naquelas normas supressoras do requisito anterioridade, do fenômeno legislativo chamado de silêncio eloqüente.
A quarta robustece a convicção de que, durante o tempo que mediou a EC 1998 e a EC 25/2000, não persistiu a exigência da anterioridade na fixação do subsídio do vereador, assim como aos demais titulares de mandato político. É impossível suprir com voluntarismo ideológico o fato, concreto, de que esse requisito foi banido da CF/88 pela EC 19. Seu posterior restabelecimento, em 2000, no bojo da EC 25, traduz alternância normativa, inspirada em evidentes decisões de cunho político, seja no suprimir seja no restaurar a indigitada condição endereçada ao legislador ordinário.
Da exposta exegese constitucional, aproxima-se a conexa questão relativa à eficácia da EC 25 de onde emerge a restauração do ?princípio? da anterioridade na fixação dos subsídios do vereador, esse agente injustificadamente discriminado em face dos demais portadores de mandato popular.
Dita questão é deformada por juízos ideológicos, à medida em que se lhe confere interpretação segundo a qual, uma vez publicada, a EC 25 adquiriu existência do mundo jurídico na data de sua promulgação, em 14 de fevereiro de 2000, e, destarte, já obrigava. O argumento, pouco imaginoso, tenta contornar um elemento objetivo incontornável. Tal é o art. 3.º, da EC 25, assim enunciado: ?Esta Emenda Constitucional entra em vigor em 1.º de janeiro de 2001?.
O realçado dispositivo, segundo José Afonso da Silva, denomina-se cláusula de vigência, a qual ?indica a época em que o ato legislativo entra em vigor e vai começar a ser executado?. O mesmo jurista, versando ainda sobre noções de técnica legislativa, mostra que esta cláusula de vigência pode exprimir-se através de duas fórmulas: ?Art. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação?; ou ?Art. Esta lei entrará em vigor no dia 1.º de … de … de 19..?. (?Manual do Vereador?, Ministério do Interior SENAM, 1969, p. 89).
Resta indisputável que a criticada exegese, no afã de ajustar a norma à convicção apriorística do oficialismo, despreza a distinção pacificada na doutrina, na legislação e na jurisprudência. Ela inverte os termos da equação interpretativa, que deve buscar na norma o genuíno significado, sem idéia ou juízo de valor extra-jurídico preconcebido. Sua carência doutrinária se desnuda no confronto com a lição acima reproduzida e também com a do sábio Pontes de Miranda. É dele este precioso escólio: ?Ora, nenhum jurista de segura terminologia jurídica confunde os três planos: o da existência, em que o fato jurídico, inclusive a regra jurídica como fato, é, ou não é; o da validade, em que o fato jurídico vale, ou não vale (= é nulo ou anulável); e o da eficácia, que é o da irradiação do fato jurídico?. (?Comentários à CF de 1967, com a Emenda 1/69?, Forense, 1985, v. 3, p. 620).
Incorporando o magistério dos doutos, a desdenhada LC n.º 95/98 (lei nacional), integrativa da previsão veiculada no parágrafo único do art. 59 da CF/88, no art. 8.º, regula a vigência das leis. Em seu § 2.º, disciplina o ?período de vacância?, estabelecendo que esta espécie de leis deverá adotar a cláusula ?esta lei entra em vigor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial?. De sorte a distinção entre vigência e eficácia tem amparo legal.
Justapõe-se à doutrina e à legislação, a jurisprudência da Corte Suprema. De fato. O Ministro Gilmar Mendes, ao relatar feito cujo julgamento atribuiu eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão cautelar proferida em ação direta de inconstitucionalidade, assentou a distinção entre vigência fática (subsistência) e eficácia normativa (aplicabilidade). Concluiu ele: ?Portanto, a medida cautelar deferida em processo de controle de normas opera não só no plano estrito da eficácia mas também no plano da própria vigência da norma?. (Recl. N.º 2.256-RN j. 11/09/2003 -Pleno RTJ 190/221).
No caso, o art. 3.º da EC 25 configura uma eficácia contida por condição temporal resolutiva. Sua eficácia teve início unicamente a partir de 1.º de janeiro de 2001.
A ordem jurídico-constitucional brasileira é pródiga em exemplos desse gênero de eficácia. Para não alongar a listagem, mencione-se a Constituição da República promulgada e publicada em 24 de janeiro de 1967, com cláusula de vigência para 15 de março de 1967. É elucidativo o comentário de José Afonso da Silva em torno da eficácia da referida Carta, no período compreendido entre a publicação e a eficácia, por ele reputado como vacatio constitucionis. Anota o jurista: ?Nesse período, a Constituição não regula nada; embora já exista, não existe juridicamente em sua totalidade porque, praticamente só atua o dispositivo que marcou o momento de sua entrada em vigor. Nesse período, portanto, continua a reger os destinos do Estado a Lei Maior que já existia. Toda lei ordinária, que tenha sido criada no período de vacatio constitutionis, será inválida, se contrariar as normas constitucionais existentes, mesmo quando esteja de acordo com a Constituição já promulgada, mas não em vigor? (?Aplicabilidade das Normas Constitucionais?, Edit. RT, 1968, p. 45). Paradigmático é também o novo Código Civil. Divulgado oficialmente em 10 de janeiro de 2002, sua aplicabilidade foi protraída nos termos do art. 2.044, que estabelece: ?Este Código entrará em vigor 1 (um) ano após a sua publicação?. Ora, a ninguém ocorreu a esdrúxula pretensão de sustentar a aplicabilidade do novo Código Civil antes de 10 de janeiro de 2003. Motivo idêntico deveria desencorajar órgãos oficiais de aplicar o ?princípio? da anterioridade na fixação do subsídio de vereador antes de 1.º de janeiro de 2001, data em que a EC 25 entrou em vigor e adquiriu eficácia.
Ademais, consoante pacificou a doutrina e a jurisprudência, a Constituição (e suas Emendas) não retroage, salvo disposição expressa. Com efeito, ensina Pontes de Miranda: ?As Constituições não têm, de ordinário, retroeficácia, porque estejam adstritas a isso?. ?Para as Constituições, o passado só importa naquilo que ela aponta ou menciona. Fora daí, não?. (?Ob. cit., v. 6, p. 392). O STF, guarda da Constituição, tem por assentado que ?O princípio da imediata incidência das regras jurídico-constitucionais somente pode ser excepcionado, inclusive para efeito de sua aplicação retroativa, quando expressamente assim o dispuser a Carta Política?. (Ag. Instr. n.º 139.647 (AgRg)-SP RTJ 155/582). Idem: Ag. Instr. n.º 152.578 (AgRg)-SP RTJ 158/687; Agr. Instr. n.º 139.004 (AgRg)-MG RTJ 165/671; RE n.º 161.320-RJ RTJ 168/297.
Ao entendimento oficial, ideologicamente predeterminado, opõe-se esta recomendação dada pelo Ministro Nelson Jobim, do STF: ?O juiz não pode interpretar a lei subjetivamente para dizer como ela deveria ser. Antes deve disputar eleição e entrar na Câmara Legislativa e lá transformar sua vontade em lei?. (cf. Jurisprudência do TSE, v. 12, n.º 4, p. 209).
Impõe-se concluir, conseqüentemente, que o subsídio das autoridades públicas, investidas em mandato outorgado pelo povo, pode ser fixado a qualquer tempo. Entre 4 de junho de 1998 início da eficácia da EC 19 e 1.º de janeiro de 2001 início da eficácia da EC 25, o subsídio do vereador igualmente pode ter sido fixado a qualquer tempo, porque liberto do ?princípio? da anterioridade.
Contudo, depois de 1.º de janeiro de 2001 os subsídios do vereador passaram efetivamente a sujeitar-se ao ?princípio? da anterioridade. Embora a próxima fixação, em tese, devesse ocorrer no último ano do quatriênio, ou seja, em 2004, parece razoável admitir que, de 1.º de janeiro de 2001 a dezembro de 2004, o subsídio do vereador tornou-se inalterável.
Outro fundamento da censurada posição oficializada, repousa no fluido ?princípio? da moralidade.
O Estado de Direito Democrático privilegia o princípio da legalidade, como suprema conquista republicana sobre a vontade do príncipe, no ancien règime. Logo, não pode um ato ser queimado na fogueira inquisitorial por força de juízo subjetivo de algum iluminado, autoinvestido na tutoria da imponderável moralidade. Dessa conduta, sem limites, redundaria o arbítrio e a imparcialidade, duas nódoas anulatórias de qualquer julgamento.
Outrossim, convém recordar que o tal princípio integra o capítulo da administração pública (art. 37, CF/88), enquanto conteúdo necessário ao ato administrativo, não alcançando a esfera legiferante, na qual prevalece a discricionariedade do legislador. O inerente juízo de valor permeia-se inevitavelmente dos padrões morais dominantes na sociedade, sendo, por isso, insindicáveis até mesmo pelo Judiciário. Forte na certeza de que o juiz julga segundo a lei, o julgamento de eventuais deslizes morais, ocorridos na função política em geral, especialmente na de criar a lei, cabe ao eleitorado, através do sufrágio periódico. Esta é a única instância decisória dotada de legitimidade intrínseca à soberania popular (art. 14, da CF/88).
Quanto ao legislar em causa própria, tal e qual o julgar em causa própria, sua condenação, incondicional e sumária, importa desconhecer circunstâncias que a invalidam. Exemplifica-se com o voto favorável a projeto de lei concedendo isenção tributária. O legislador, sendo contribuinte, vai auferir o benefício, salvo se renunciá-lo. Situação análoga protagoniza o magistrado, salvo a irrenunciabilidade de vantagem decorrente de sentença favorável ao consumidor. As hipóteses são múltiplas. Tocante ao legislador, assinale-se que a especificidade institucional do mandato político inclui a presunção de que, no exercício do múnus, o titular sempre exprime a autêntica vontade do povo. Dele é o mandatário. Igualmente, o magistrado alberga o ego sob a toga, apenas emprestando sua voz à lei. Dela é o intérprete.
Por fim, remanesce a questão atinente à remuneração das sessões extraordinárias. Tanto no período ordinário 15 de fevereiro a 30 de junho e de 1.º de agosto a 15 de dezembro (art. 57, da CF/88) quanto no período de recesso 16 de dezembro a 14 de fevereiro e 1.º a 31 de julho , sessões extraordinárias podem realizar-se, no caso de convocação extraordinária da Casa de Leis. Infere-se do teor do art. 57, § 7.º, da CF/88, que, pela participação em sessão extraordinária, realizada durante o recesso, as Câmaras Legislativas podem pagar aos seus membros parcela indenizatória limitada ao valor do subsídio mensal. Tal permissivo não conflita com a regra do art. 39, º 4.º, da CF/88, que determina a fixação de subsídio unificado, sem agregados, porque este preceito define o subsídio como remuneração, enquanto aquele define o ?jeton? como verba indenizatória. Por conseguinte, desde que o valor não ultrapasse o quantum do subsídio, o parlamentar pode ser ressarcido em função da presença efetiva às sessões extraordinárias.
No que diz respeito às sessões extraordinárias, levadas a efeito no período ordinário, a restrição contida no § 7.º, do art. 57, da CF/88, acrescentado pela EC 32/2001, induz ao entendimento de que, a contar da sua vigência, mas não antes, ficou vedada a indenização. É que estas não acarretam despesas de locomoção do parlamentar, como aquelas do recesso, cuja finalidade, teoricamente, consiste em permitir ao representante manter contacto mais demorado com as bases eleitorais, distanciadas da sede da Câmara.
Antes de encerrar estas linhas, é imperativo de justiça repudiar a orquestração da mídia sensacionalista, que se vale de exceções para denegrir, indiscriminadamente, a função parlamentar. De saída, diga-se que toda a generalização simplificadora padece do vício da irracionalidade, além de injusta. A correção, por exemplo, da maioria dos 50 mil vereadores que atuam nas 5 mil Câmaras, desmente os noticiaristas apressados.
Um dos efeitos nocivos da maledicente campanha se faz sentir no descrédito popular face ao Poder Legislativo, sem o qual a democracia fenece. No entanto, ao que se sabe, todos parlamentares brasileiros foram investidos pelo voto direto dos cidadãos. Sobre estes recai o encargo de julgá-los, por ocasião das eleições periódicas. Outro, não menos deletério, se traduz na imposição de esforço adicional aos magistrados em preservar sua independência e neutralidade judicantes do contágio dessa persistente influência. Aliás, a questão remete à ponderação do ministro Marco Aurélio, no STF, enunciada nestes termos: ?quanto maior o clamor público, exacerbado pelos meios de comunicação, maior deve ser o rigor da obediência ao direito de defesa?. (RTJ 167/647).
Reginaldo Fanchin é advogado e membro do Instituto dos Advogados do Paraná.