Ambigüidade inaceitável

O Partido Liberal é um dos que formam a base de sustentação do governo. Mais que isso, desde a primeira hora, integra o governo. Embora ninguém tenha votado nominalmente em José Alencar, Lula se apresentou à nação com o vice-presidente que escolheu e, com ele, foi vitorioso. Quem votou em Lula, votou em Alencar. Em situações como essa, é de se pressupor que presidente e vice estejam afinados para o que der e vier.

Não é bem assim que ocorre, como estamos vendo. Desde o início, o vice-presidente demonstrou discordância de algumas coisas que acontecem no governo a que ele serve e que constitucionalmente integra com as mesmas obrigações do titular. Começou com a questão dos juros altos, no que a nação lhe dava discreta razão. Mas era visível o constrangimento do governo que, mesmo silenciando diante dos conceitos emitidos pelo segundo homem na escala de importância da República, às vezes mesmo no exercício da presidência, sofria o desgaste natural das contradições expostas. Isso de certa forma acontecia também com o PT – o próprio partido do presidente Lula, que tratou de expulsar os primeiros insatisfeitos.

Pois bem. Apenas dois dias depois de o ministro da Casa Civil, José Dirceu, advogar a formação de um “pacto nacional” pela estabilidade envolvendo os mais amplos setores da vida nacional, o partido do vice-presidente da República faz divulgar ácida carta com severas críticas ao governo. Exatamente no sentido contrário ao mutirão imaginado como couraça contra uma crise internacional mal desenhada. O documento surge na esteira de atos outros tocados com o som de idêntico diapasão. Não faz muito tempo, o líder do PL pediu a cabeça do ministro Antônio Palocci, da Fazenda, enquanto o próprio vice-presidente falava de incompetências outras e de falta de projetos consistentes, atacando especificamente a questão da reforma agrária.

Na carta recém-divulgada, o PL compara a situação do País à Grande Depressão dos Estados Unidos nos anos 30 e culpa o governo que aí está por ter aprofundado o modelo econômico do governo anterior, agravando índices de desemprego e criminalidade. Não que esteja errado no diagnóstico, embora dizer que nossa crise não tem paralelo na história é um pouco de exagero. Assim como é exagerado lembrar o “caminho fascista e nazista” seguido após “crises sociais provocadas pelo alto desemprego nos marcos do velho liberalismo”.

Abstemo-nos de reproduzir aqui outros trechos da carta revelada à nação depois de ter sido submetida, segundo se diz, aos olhares atentos da autoridade máxima do partido – o vice-presidente em pessoa. Isso quer dizer que ele leu, compreendeu e concordou. No Planalto, ministros, assessores e o próprio presidente Lula, à primeira hora, torceram o nariz e evitaram sequer fazer comentários. Talvez porque o documento termina jurando fidelidade ao presidente Lula.

É estranho tudo isso. Um morde-assopra sem precedentes faz do Planalto um lugar para loucos. Quem está no governo é contra o que o governo faz. Mas nem tanto, desde que continue a usufruir das benesses do governo. Na velha Roma, por muito menos Cícero mandou Catilina tramar fora dos muros da cidade. Aqui o PL – e outros, a começar por algumas alas do próprio PT – eximem-se da responsabilidade pelas falhas e chagas que existem, embora para elas tenham contribuído. E o fazem, às vésperas das eleições, com objetivos certamente bem definidos: tentar enganar os eleitores. Outra vez.

Outro muro que cai. Seus companheiros de caminhada jogam para a torcida à custa de um hipotético desentendimento interno. Que não existe porque o próprio partido do governo dispensa oposição ao assumir essa ambígua postura de quem não tem responsabilidade pelo que aí está.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo