Amargas lembranças

Enquanto o presidente da República Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez, fazia a enésima visita a Fidel para com ele posar para fotógrafos dos jornais oficiais cubanos e propagar o bom estado de saúde do comandante, reunida numa praça de Caracas – afinal não é a Casa do Povo? – a Assembléia Nacional aclamou a chamada Lei Habilitante, concedendo ao presidente a faculdade de governar por decreto pelo período de 18 meses.

A subserviência flagrante e emblemática do baixo índice de politização dos atuais congressistas venezuelanos, além do translúcido apreço que devotam ao genuíno espírito das instituições democráticas, sequer era necessária, pelo simples motivo que todos pertencem ao partido controlado pelo presidente, uma espécie de contrafação piorada do moribundo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México por mais de 70 anos.

A desfaçatez reinante nos meios políticos dominantes da Venezuela é tanta que os beleguins mais inconseqüentes do partido chavista tiraram as máscaras e esbravejaram palavras de ordem e saudações ao parto bem-sucedido da ?ditadura da democracia?, ou o que signifique, em toda a extensão e profundidade, essa furibunda síndrome institucional que, tudo leva a crer, chicoteará a república caribenha em futuro breve.

Com a faca e o queijo nas mãos, para usar expressão popular que, a rigor, se encaixa no breviário composto pelo fundador do socialismo do século XXI, Chávez baixará decretos regulamentando atividades em onze áreas da administração, da educação à economia, passando também pela saúde pública e reservas naturais de hidrocarbonetos, em especial de petróleo, do qual a Venezuela figura entre os maiores produtores mundiais.

Os leitores mais experientes por certo hão de recordar a melancólica crônica do Estado Novo, sobre o qual dominou com a plenitude dos poderes constitucionais usurpada do Legislativo e do Judiciário o lendário ?estadista? de São Borja, a quem se serviu na salva da adulação queremista as derradeiras raspas de respeito às leis e ideais republicanos.

Não fosse um visível suplício de Tântalo, expor os leitores a lembranças tão amargas, haveria algum didatismo em remexer nos escombros da ditadura militar, que por uma vintena de anos – os anos de chumbo – transformou em exercício corriqueiro a reedição dos famigerados decretos-leis do percurso getulista, mediante os quais o ditador encarnava prerrogativas que não lhe eram de direito.

Mesmo enquanto o Congresso esteve aberto, até serem convencidos dos males causados pelo aleijão, os generais-presidentes eleitos pela maioria adestrada de parlamentares do partido oficialista dispensavam os salamaleques e atribuíam caráter de lei às suas elucubrações mais recônditas.

Guardadas as devidas proporções e sem fazer qualquer prognóstico aziago à operosa nação venezuelana, não se deve mistificar, porém, a semelhança entre os fados que mancharam a democracia brasileira e os arreganhos de supremacia irrestrita do presidente Hugo Chávez.

Com tanto poder assim, mesmo supondo que alguns dos 165 integrantes da Assembléia Nacional tenham seus brios democráticos feridos e oponham resistência, mesmo que de fancaria, Chávez terá caminho aberto para impor a reeleição indefinida e socializar o regime, nacionalizando os setores que julga imprescindíveis para o êxito da revolução bolivariana.

À semelhança de seu colega mexicano, o coronel sempre poderá se jactar: ?Não contavam com minha astúcia?…

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